Por trás dos comportamentos que adotamos diariamente nas nossas interações sociais, poderia ser dito que se trava continuamente uma disputa pelo poder de definir significados dos elementos do mundo que compartilhamos. Nos bares, por exemplo, as longas conversas sobre futebol evidenciam esforços para firmar o significado do que seria o “time vencedor” e o “time perdedor”. Outro exemplo é quando comentamos sobre como nos vestiremos em determinada ocasião, querendo saber do interlocutor como ele se vestirá, na busca de um significado compartilhado para “estar adequado” ou “estar belo”. A mesma disputa ocorre numa mesa de restaurante na qual amigos decidem o que comer (significado do que “deve ser comido” e “quando”), ou quando conversamos sobre o nosso candidato preferido para a Presidência da República (significado de “quem deve governar”). Nesse processo, assumimos posições que podem ou não prevalecer dentro da comunidade na qual estabelecemos vínculos sociais, criando invariavelmente nela uma pequena “arena política” da qual não podemos escapar.
Na FDRP não é diferente. Constituindo uma comunidade relativamente grande e complexa, todos nos esforçamos para estabelecer significados para muitos conceitos que ainda não se consolidaram no nosso meio, nos enveredando por verdadeiros embates em torno desse poder. O que significa “Atlética” na FDRP? E “bateria”? E “movimento estudantil”, “aula” ou “avaliação”? A despeito das normas que regulam a universidade como um todo, cada unidade da USP possui diferentes significados para cada um desses conceitos, formando um todo que acaba por determinar, afinal, o que é cada faculdade.
Nesse momento, muitos conceitos que darão os traços característicos mais elementares da nossa faculdade estão sendo forjados nos círculos sociais que se formam dentro da nossa comunidade. Alguns desses conceitos em disputa incluem o “estágio”, a “avaliação”, o “tempo integral do curso”, etc.
Pois bem. Uma dessas disputas foi travada na reunião da Congregação do dia 03/12, no qual estava em jogo o conceito de “dedicação exclusiva (RDIDP) dos docentes”. Na reunião, pelo menos duas concepções se contrapuseram. De um lado, uma que basicamente defende não haver “diferenças significativas em relação ao regime de dedicação em tempo parcial”. Para os partidários dessa concepção, não haveria grandes diferenças para a faculdade se os seus professores fossem de dedicação exclusiva ou parcial, uma vez que não haveria maiores influências na qualidade das aulas ministradas aos alunos. De outro, um significado presente em faculdades como a de direito da UFPR e da UFSC, nas quais entende-se que a pesquisa e a extensão oxigenam fundamentalmente o conhecimento repassado aos alunos, renovando o conteúdo das disciplinas e contribuindo para um papel mais significativo da faculdade na disputa por definir significados que ocorre em âmbito de toda a sociedade em torno dos conceitos de “direito”, “justiça”, “Judiciário”, “julgamento”, etc. (essa mesma significação de regime de dedicação exclusiva está presente em faculdades de outras áreas, como na Medicina, na Farmácia e na Enfermagem daqui da USP de Ribeirão).
No plano fático, esse conflito se materializou em torno da discussão da admissibilidade ou não da seguinte situação:
Um determinado professor presta concurso para entrar na faculdade compromentendo-se a cumprir regime de dedicação exclusiva. Em seguida, depois de alguns meses, pede para mudar o seu regime para o de tempo parcial. Essa atitude deve ser admitida pela faculdade? A Congregação deve aprovar a iniciativa?
Veja que, ao avaliar a questão, é pressuposto fundamental estabelecer qual o conceito de “dedicação exclusiva” que estamos adotando. Se o conceito for aquele que não estabelece qualquer diferença em matéria de benefícios trazidos à faculdade, tanto faz, sendo até preferível o regime parcial, uma vez que este custa menos à universidade em termos de salários pagos e de outros recursos disponibilizados.
Se esse conceito, porém, entender que o regime de dedicação exclusiva implica em maior quantidade de pesquisa produzida, de projetos de extensão realizados e de tempo para orientar alunos, a mudança de regime deve ser avaliada em termos de custos e benefícios para a faculdade, devendo a perda causada pela mudança ser limitada ou compensada, por exemplo, com um conjunto de metas de produção acadêmica que diminuam os danos causados à faculdade que, originalmente, contratou o professor contando com a dedicação exclusiva do docente.
Na UFPR, por exemplo, o conceito em disputa adquiriu características que a aproximam da última das hipóteses descritas. Assim, como reflexo do significado que por lá preponderou, as normas da universidade estabelecem que a modificação de regime de trabalho pelo docente fica condicionada a um sistema de pontuação que, se não for atingido pela unidade, não dará a ela o direito de aprovar a mudança de qualquer de seus docentes. Cabe ressaltar que, na faculdade de direito dessa universidade, conhecida pela grande e boa produção acadêmica de seus docentes, somente 11 de seus 58 professores estão em regime de dedicação parcial, ou seja, 81% deles se dedicam exclusivamente à faculdade.
Na UNESP, por sua vez, a mudança de regime não é exatamente vista como um problema, sendo o regime de dedicação exclusiva muitas vezes interpretado como um "prêmio" a ser concedido para o docente que já trabalha muito estando em regime de dedicação parcial, que é aquele normalmente previsto inicialmente nos editais dos concursos lá realizados. Desta forma, a mudança do regime integral para o parcial raramente é negada aos seus docentes, sendo visto inclusive como um benefício para a universidade, que arcará com custos menores, em especial em áreas mais profissionalizantes e menos dependentes de pesquisa, como é o caso do direito.
Os efeitos dessa diferença de concepção sobre o papel exercido pelas respectivas faculdades de direito e sobre seus respectivos padrões de inserção na sociedade podem ser expressos por meio dos números da tabela abaixo:
Tabela: Produção acadêmica dos docentes das faculdades de direito da UFPR e da UNESP, em 2007.
Tabela: Produção acadêmica dos docentes das faculdades de direito da UFPR e da UNESP, em 2007.
Conceito CAPES em 2007 | Artigos completos publicados em periódicos, por qualidade da publicação | Livros e Capítulos de livro | |||||||||
Internacional | Nacional (inclusive local) | Livros | Caps. | Coletânea | Verbetes | ||||||
A | B | C | A | B | C | ||||||
UFPR | 6 | 5 | 24 | 3 | 67 | 13 | 8 | 39 | 182 | 2 | 10 |
UNESP | 3 | - | - | - | 14 | 20 | 6 | 15 | 15 | 2 | - |
Fonte: CAPES.
Como é possível observar nessa discussão, o que está em jogo é qual significado prevalecerá para o “regime de dedicação exclusiva” do docente da FDRP, podendo condicionar todo o futuro da nossa faculdade em termos de sua qualidade e relevância para a qualidade do sistema jurídico, para o ensino do direito no país e para a saúde institucional da sociedade brasileira.