Por Marcio Pochmann, presidente do IPEA
O Renascentismo Europeu, ao final
do século XIV, inaugurou uma nova fase de entendimentos acerca da natureza do
homem e do funcionamento do mundo, o que concedeu às ciências humanas um valor
estratégico substancial. Por meio de um conjunto filosófico comum e acompanhado
do método de aprendizado fundamentado na razão e evidência empírica, as
humanidades terminaram por subverter a perspectiva espiritualista predominante
até então no mundo medieval.
Com o desafio estabelecido de
compreender a realidade em sua totalidade, floresceram as universidades e a
pesquisa comprometidas com o papel central de organização, produção e difusão
técnico-científico de caráter universal. Concomitantemente às revoluções
industriais dos séculos XVIII e XIX, as ciências, sobretudo as aplicadas, foram
incorporadas às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial. Ou
seja, foram incorporadas à vida nas cidades, uma vida constituída pela
materialidade do consumismo decorrente da produção de bens e serviços em escala
cada vez mais global.
Para isso, a partilha do
conhecimento em múltiplas especializações se fez crescente, gerando
fragmentação do ensino e pesquisa compatível com os requisitos de maior
produtividade técnico-científica exigidos por distintos setores de atividade
econômica. A aplicação recorrente do conhecimento técnico-científico à produção
material de bens e serviços modernos tornou possível agregar valor ao processo
de acumulação de capital e impor progresso material inimaginável às sociedades
urbano-industriais.
A perspectiva de crescente
especialização da produção técnico-científica, que até então se encontrava
encastelada em contidos centros de pesquisas, possibilitou a emergência de
novos laboratórios e investimentos em pesquisa inseridos nos plano de negócios empresariais.
Assim, a associação entre diversos centros difusores das ciências humanas -
públicos e privados - fortaleceu gradualmente a crença de que a mercantilização
do trabalho imaterial deveria atender às exigências do padrão de
desenvolvimento urbano-industrial.
Tudo isso, contudo, não deixou de
produzir colateralmente o esvaziamento de uma unidade filosófica comum que
concedia às ciências humanas o valor estratégico no entendimento totalizante da
realidade do mundo e do homem. Certa cegueira situacional passou a acompanhar o
desenvolvimento fragmentado das ciências humanas, com inegáveis graus de
alienação na produção do conhecimento.
Tanto assim que a partir dos
últimos 25 anos do século XX, a produção do conhecimento, anteriormente
centrado nas universidades tradicionais, foi sendo substituída pelas chamadas
universidades corporativas, responsáveis por funções como a formação de quadros
e capacitação permanentes dos trabalhadores nas grandes empresas. Nos dias de
hoje, somente as 500 maiores corporações transnacionais respondem por cerca de
4/5 de toda a produção global de investimentos em ciência e tecnologia. Em
vários países do mundo, a quantidade de universidades corporativas supera as
universidades tradicionais.
A reação radicalizada do sistema
universitário tradicional foi o de se comprometer com a maior elevação da
produtividade nas ciências, especialmente por meio do aprofundamento das
especializações, o que a dispensou de vez de qualquer compromisso com a
existência de algum corpo filosófico integrador do entendimento acerca do homem
e do mundo. Por conta disso, currículos foram simplificados e esvaziados da
identidade comum, enquanto as ciências humanas seguiram aprendizagem
desinteressante e descomprometida da referência e aplicação prática na
realidade.
No mesmo sentido, as agências
públicas de financiamento da pesquisa concentraram-se no fomento setorial e
individualizado da produção do conhecimento comprometido fundamentalmente com a
perspectiva de elevação da produtividade sistêmica das ciências humanas.
Apostaram-se também na competição inter e intrauniversitária movida pelo uso de
tecnologias das competências, o que rompeu com a fronteira nacional dos
conteúdos curriculares. De caráter cada vez mais internacionalizado, as medidas
nacionais de avaliação e monitoramento do ensino e pesquisa subordinam-se à
coordenação exógena e descolada dos interesses nacionais. Tanto assim que não
tem sido incomum conceder à produção técnico-científica valorização superior
com publicação externa e descontextualizada do que aquela comprometida com as
exigências da realidade nacional.
Esse modelo internalizado nos
países não-desenvolvidos não reduziu o fosso que separa a produção
técnico-científica das exigências associadas ao setor produtivo. Da mesma forma,
o movimento de internacionalização do parque produtivo tornou mais interessante
a importação da tecnologia dominante na mesma medida em que empresas
multinacionais realizam concentradamente em suas matrizes os maiores esforços
de desenvolvimento da pesquisa em ciência e tecnologia. É isso que faz com que
somente 10% dos 11 mil doutores formados anualmente no Brasil possam se
estabelecer nos centros de pesquisa vinculados ao setor produtivo, bem ao
contrário de outros países.
A recuperação da unidade
filosófica comum nas ciências humanas e o seu engajamento no entendimento do
mundo e do homem atual constituem peças fundamentais de uma estratégia de
superação do atraso subdesenvolvimentista. Do contrário, produção do
conhecimento e exigências do padrão de desenvolvimento poderão continuar a
andar em sentido distinto.
Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia da Universidade Estadual
de Campinas (IE-Unicamp).
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