Fábio Takahashi, da Folha de S.Paulo
A cada divulgação de resultado do exame da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), invariavelmente negativo, fala-se em reforma no ensino jurídico no país. Se dependesse do diretor da tradicional Faculdade de Direito da USP, Eduardo Marchi, a mudança seria radical e afetaria professores e estudantes.
Na opinião dele, os docentes não poderiam desempenhar uma segunda atividade, teriam de se contentar com o salário de professor universitário e esquecer os carros importados. Já os estudantes não deveriam fazer estágios. Tudo isso para que houvesse, de ambas as partes, preparação para as aulas.
Sobre a USP, Marchi, 47, defende que haja controle da produção dos docentes e que os alunos com baixo rendimento sejam excluídos. Essas vagas, para ele, deveriam ser destinadas a estudantes da escola pública --o diretor defende abertamente a política de cotas desde 1996, quando se tornou professor titular.
A Folha entrevistou o diretor cinco dias após a OAB-SP divulgar que o resultado do último exame foi o segundo pior da história (só 19,2% dos candidatos foram aprovados para a segunda fase, que acontece hoje). A prova é necessária para o formando exercer a função de advogado.
Leia abaixo trechos da entrevista de Marchi.
Folha - O que precisa ser feito no ensino de direito no país?
Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi - A primeira coisa é os docentes terem dedicação integral. Há uma avaliação equivocada no Brasil de que o grande professor de direito, o grande jurista, precisa ter atividade prática. Mas não é preciso ser advogado ou promotor para saber o que acontece na prática. A falta de dedicação integral no país é prejudicial aos alunos, porque os docentes só ensinam o que conhecem da prática.
São pessoas inteligentes, mas passam oito horas por dia cuidando da advocacia, da magistratura ou do Ministério Público, não têm tempo de preparar a aula. Assim, apenas repetem o que está nos livros. Em certo sentido, o estudante ganharia mais se ficasse em casa estudando.
Folha - Qual o problema dos professores ensinarem só a prática?
Marchi - O estudo mais aprofundado do direito, em linhas gerais, é igual à pesquisa das ciências exatas e biológicas. Da mesma maneira que um pesquisador na área da biologia fica o dia inteiro fazendo testes de laboratório para saber qual a melhor mistura do produto químico, na área de direito deveria ser assim.
Diante de um caso jurídico a ser discutido em sala de aula, o professor deve antes fazer vários testes. Ele teria de explicar não só a solução brasileira mas precisaria também fazer um estudo de legislação de várias partes do mundo, estudar a literatura de países com o mesmo sistema que o nosso, como Alemanha e Itália. Como alguém que trabalha oito horas por dia vai fazer testes?
Folha - Mas por que saber a legislação de fora é importante?
Marchi - Sabendo as várias soluções de legislação estrangeiras ou o que pensam os juristas estrangeiros, podemos apresentar críticas e melhorias da solução brasileira para determinado caso.
Folha - Quantos professores têm dedicação integral na Faculdade de Direito da USP?
Marchi - Formalmente, 10%, mas cerca de 30% podem se encaixar nesse perfil, por se dedicarem muito pouco a outras atividades. É um número razoável, mas teria de ser maior. Em geral, muitos dizem que precisam ter outro trabalho porque, de outro modo, não sobreviveriam. Se fosse assim, professores de história e de geografia estariam mortos.
A questão é que a atração financeira no direito é grande. Um aluno recém-formado, bem preparado, pode virar juiz de direito ou promotor e ganhar R$ 9.000 aos 23 anos. Mas dá para viver com dedicação integral à docência. A pessoa só não será milionária.
Folha - Quanto ganha um professor com dedicação integral na USP?
Marchi - O professor-doutor, que é a titulação da maioria, ganha perto de R$ 6.000. Não é um salário desprezível, mas não dá para ter um Jaguar, como um grande advogado pode ter. Só que é assim na Europa também, os docentes lá não são milionários.
Folha - Mas se for exigida a dedicação integral, as pessoas mais bem preparadas não tendem a sair da universidade devido à diferença de salários?
Marchi - Um grande advogado ou juiz pode não ser um grande jurista. Para ser um jurista, é preciso acompanhar a literatura mundial e ficar no laboratório, fazendo os testes, o que é fundamental para sua formação.
Folha - Qual a opinião do sr. sobre os estágios?
Marchi - É outra questão grave no país, que envolve até uma falta de sensibilidade dos grandes escritórios de advocacia. Nos sistemas estrangeiros, até na Argentina e no Uruguai, o estágio de direito é como na medicina, ou seja, liberado somente no quinto ano.
Aqui no Brasil, começa até no primeiro. E os escritórios contratam por oito horas diárias. Os estudantes substituem a formação acadêmica pela do escritório. Assim, ninguém estuda.
Estou em contato com a PUC e com o Mackenzie para, juntos, aprovarmos uma norma de comum acordo restringindo esses estágios durante a faculdade. A idéia é só liberar os estágios no quarto ano e por quatro horas.
Podemos fazer isso não assinando os convênios com os escritórios [para um estágio ser oficial, a universidade precisa autorizá-lo; assim, o aluno ganha a carteirinha da OAB e pode atuar em determinadas situações].
Folha - Mas no escritório o aluno não aprende o que ele vai usar depois como formado?
Marchi - Ele recebe a formação acadêmica geral, que servirá para várias áreas? Não. Ele aprende o que dá dinheiro para o escritório naquele momento. Exemplo: uma medida provisória do governo, que gera mandados de segurança a rodo. Durante um ano, o escritório só faz isso. O estudante passa todo esse tempo em cima de um assuntinho, que depois vai ser revogado. Enquanto isso, não tem uma formação de base.
Na época das privatizações [na década de 90], os escritórios de advocacia trabalhavam até de madrugada, analisando propostas de fusão de empresas, com os nossos estudantes lá, junto. O que aconteceu? A privatização acabou, e os alunos perderam um ano de estudo fazendo fusão de empresa.
O trágico é que a maioria dos professores apóiam os estágios logo no segundo, terceiro ano. Mas isso está tudo ligado, pois muitos deles também são advogados.
Folha - Quantos alunos do direito da USP fazem estágio?
Marchi - No primeiro ano, são poucos. No segundo, já são uns 30%. No terceiro ano, metade.
Folha - Mas apenas o conhecimento acadêmico prepara o aluno para o mercado?
Marchi - Perfeitamente. Ele tem a formação nas matérias fundamentais e nos princípios gerais que servem para qualquer novidade do mercado. Então, qualquer portariazinha que vier, ele enfrenta sem dificuldade. A lógica é sempre a mesma.
Outro problema é essa enxurrada de cursos de direito. Nos Estados Unidos, faltam advogados, porque eles formam poucos, mas bem. Aqui, não. As faculdades colocam um monte de gente no mercado, sem nenhum preparo, o que fica claro no exame da OAB. É melhor fechar um monte de faculdades.
Folha - Isso não é injusto para a pessoa que precisa de um diploma universitário para melhorar sua condição socioeconômica?
Marchi - É injusto para o indivíduo. Mas acima do interesse privado dessa pessoa, está o interesse público. É melhor termos menos possibilidade de acesso ao ensino superior, porém com um bom ensino, do que formar uma massa para resolver os problemas individuais, mas que depois irá prejudicar os clientes.
Folha - Esse discurso costuma ser classificado como elitista...
Marchi - É elitista, mas no sentido da formação de uma elite intelectual, não econômica. Por isso, defendo uma forte política de bolsas e cotas para os melhores alunos de escola pública.
Folha - O exame da OAB é bem feito ou está com um nível de exigência acima do necessário?
Marchi - Ele tem um bom rigor. Um estudante médio teria de passar nesse exame. Cerca de 80% dos estudantes daqui da São Francisco, da PUC e do Mackenzie passam sem estudar.
Folha - Quais são os problemas que o senhor vê na USP hoje?
Marchi - Precisa haver mais controle de professores e de alunos. Em 1994, criaram um sistema em que os alunos avaliavam os professores. No final do semestre, junto com a prova, vinha um questionário com dez perguntas, como "ele é assíduo? entende a matéria?". Durante três anos foi assim. Depois ficou facultativo.
Agora, a avaliação virou da matéria, e não do professor. São perguntas como "a disciplina é importante?" É necessário mais controle dos professores, saber o seguinte: "O senhor está publicando o quê? Quantas aulas dá por semana?". Se não está publicando nada e é mal avaliado pelos estudantes, até logo.
Há um centro na USP que faz esse acompanhamento, mas ele está enfraquecido politicamente, porque enfrenta oposição da Adusp (associação dos docentes).
Além disso, em teoria, sou a favor de freqüência livre dos estudantes. Mas, nesta fase em que poucos alunos ingressam no ensino público, deveria haver controle de presença. Se não assistir às aulas e não conseguir nota mínima em dois semestres, exclusão. Mas é uma luta difícil, quase ninguém quer mais controle.
Folha - O senhor continua defendendo as cotas, certo?
Marchi - Sim. Mas a cota precisa estar sempre estar conjugada com um nível mínimo [de qualidade]. Podemos estabelecer que 20% das vagas vão para os melhores alunos da rede pública.
Até porque, entre 10% e 20% dos alunos não merecem estar aqui. Esses não levam a sério o estudo, não entendem a importância da vaga que ocupam. Isso vale para aqueles que ficam nas baladas e também para aqueles que ficam só na política. Eles teriam de ser jubilados da USP. E as vagas deles poderiam ser ocupadas por bons alunos de escola pública.
Folha - E como o sr. analisa a polêmica envolvendo o ministro Nelson Jobim, que é acusado de tomar decisões com caráter político no Supremo Tribunal Federal e, além disso, é cotado para ser candidato nas eleições deste ano?
Marchi - Sobre a politização, não entro nessa questão. Mas digo o seguinte, e fica aqui a minha crítica: dependendo do cargo público --como professor-titular da USP, ministro do Supremo ou desembargador-- está implícita a obrigação de continuar nesse cargo honroso até a [aposentadoria] compulsória.
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