Por Fernando Nogueira da Costa, professor do IE-UNICAMP e ex-diretor executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos.
Umas das “cenas
da vida brasileira” que antes eu desconhecia e mais me
impressionaram, durante 4,5 anos em que fui diretor-executivo da FEBRABAN
(2003-2007), foi ser informado sobre as quadrilhas de crime
organizado que agem no Poder Judiciário para achacar bancos.
Bancos são responsáveis por recursos de terceiros e repassam todas as perdas,
inclusive as de origem criminosa, para os juros e as tarifas cobradas, ou seja,
todos os clientes sofrem com esses crimes. Maíra Magro (Valor, 07/03/12)
informa a respeito.
A cada ano, milhares de pessoas no país têm o nome utilizado em
ações judiciais fraudulentas contra bancos, sem saber disso. Elas são vítimas
de quadrilhas formadas por
advogados que usam o Judiciário para praticar golpes.
Atualmente, entre 10% e 15% dos
processos judiciais contra as maiores instituições financeiras do país envolvem
algum tipo de fraude, segundo estimativa da Federação Brasileira de
Bancos (Febraban). O problema mobiliza a Polícia Federal e o Ministério
Público, em investigações que já levaram à prisão, no Rio de Janeiro e em São
Paulo, de grupos especializados no
crime de ludibriar tribunais.
Um dos golpes
mais comuns envolve pedidos de correção
inflacionária durante os planos econômicos das décadas de 1980 e
1990. A discussão legítima acabou desvirtuada em milhares de processos, muitos
deles em nome de pessoas que nunca imaginaram acionar o Judiciário com esse
propósito. Outra modalidade ficou conhecida como indústria
do “limpe seu nome”. Profissionais mal intencionados forjam
documentos alegando inscrições indevidas em cadastros de devedores como SPC e
Serasa, para depois reclamar danos morais.
Usaram nome, CPF e extratos bancários, por exemplo, para
pleitear perdas do plano Verão de morador do Rio de Janeiro. Ele não sabia que
figurava como autor de um processo contra o Itaú em Limeira, no interior de São
Paulo, onde nunca residiu. O banco foi condenado na Justiça a pagar R$ 177 mil
ao suposto autor da ação. Mas quem recebeu o dinheiro foi a advogada que
assinou o pedido.
Em outro tipo de fraude, advogados entram com
centenas de ações de exibição de documentos contra um mesmo banco, em
diferentes comarcas. Chegam a pedir a apresentação de todos
os extratos de um correntista nos últimos 20 anos, com a
justificativa de verificar possíveis cobranças ilegais. Diante da enormidade de
processos, os bancos nem sempre conseguem cumprir o prazo definido pelos
juízes, apenas alguns dias, para entregar informações de época em que os
arquivos ainda eram em papel. Acabam condenados a
pagar honorários aos advogados que entraram com as ações, ainda que não haja
cobrança irregular. Como as ações são ajuizadas em massa, o
prejuízo pode ser considerável.
O objetivo comum nesses processos é induzir o Judiciário a erro,
montando caso falso. Em algumas cidades, se os processos fossem verdadeiros,
mais de 100% da população adulta estaria movendo ações contra as instituições
financeiras. Tanto o banco como o cliente são vítimas.
As demandas são manipuladas com documentos
falsos, ou pedidos repetidos de um mesmo autor, cujo nome é
camuflado em grafias ligeiramente diferentes. Depois, advogados munidos de procurações
também falsas levantam
dinheiro em nome de terceiros. Geralmente há conluio,
dificilmente essas fraudes são cometidas por uma pessoa sozinha. É preciso
conhecimentos técnicos e a participação de atores nos ambientes onde elas são
produzidas.
Quando a estratégia é descoberta pelo juiz de certa comarca, os
advogados migram para outras, usando os mesmos artifícios. Juízes de boa-fé
estão sendo enganados, imagine os de má-fé: estes não se enganam! Quando o
magistrado honesto percebe o problema, a reação é imediata: as ações são
declaradas improcedentes. Mas os advogados vão mudando de comarca, conforme a
decisão do juiz.
Aposentada, moradora de Brasília, encontrou por acaso na
internet duas ações ajuizadas em 2008 em nome de seu pai, que morreu 17 anos
antes. Elas corriam nas cidades de Valinhos e Limeira, no interior de São
Paulo, pedindo, novamente, a correção da poupança durante os planos econômicos.
Além do gasto de tempo e dinheiro para lidar com a farsa, a família reclama do constrangimento:
ver a imagem do pai, homem extremamente íntegro, ligada a bando de
estelionatários.
A fraude surgiu depois que os bancos foram condenados, em ações
coletivas no país, a repor aos poupadores perdas financeiras durante os planos
Bresser, Verão e Collor. O assunto ainda será
avaliado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o correntista beneficiado por
sentenças coletivas definitivas pode receber as correções entrando com ações
individuais. O direito, porém, acabou deturpado em inúmeros processos.
Determinada advogada é investigada por mover mais de 500 ações
fraudulentas no interior paulista. Ela foi denunciada pelo Ministério Público,
na 3ª Vara Criminal de Valinhos, por estelionato praticado de forma repetida –
193 vezes. Segundo o promotor que atuou na causa, os processos envolveriam mais
de R$ 12 milhões, dos quais R$ 368 mil chegaram a ser retirados. Não se
concluiu ainda nas investigações se houve conluio com outras pessoas, ou quebra
de sigilo por funcionários do banco.
Em setembro, investigações da polícia e do Ministério Público em
São Paulo levaram à prisão de dez pessoas acusadas de fraudar o Judiciário em
ações de planos econômicos. Segundo a denúncia que corre na 1ª Vara Criminal de
Avaré, no interior paulista, comprovou-se a existência de quadrilha organizada,
comandada por advogado e inúmeros outros participantes. Este advogado já
cumpriu dois mandatos como vereador na cidade de Lençóis Paulista. De acordo
com o MP, a quadrilha conseguia ilegalmente bases de dados com informações
bancárias de correntistas, e entrava com ações em nome dessas pessoas, usando
documentos falsos.
Segundo as investigações, o grupo tentava levantar cerca de R$
20 milhões em mais de 12 mil processos judiciais, em São Paulo e algumas
comarcas de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. Os dados bancários sigilosos
seriam obtidos por funcionários de empresas terceirizadas que prestavam
serviços aos bancos, e teriam sido repassados a outros profissionais que operam
de forma semelhante.
O dito cujo passou 37 dias na prisão. Agora está advogando
normalmente, enquanto responde ao processo criminal em Avaré. Advogados que
atuam em ações de planos econômicos têm acesso fácil a bases de dados de
correntistas. Se você consultar advogados que mexem com expurgos, eles têm
essas fontes. As pessoas oferecem as bases de dados e, se procurar, encontra
até na internet. As bases de dados incluem “alguns bancos”. O advogado
confirmou que tem milhares de processos contra bancos, e disse que muitos
clientes são obtidos por meio do Instituto Nacional de Proteção e Defesa dos
Direitos do Cidadão (Inapadec), que atua em três Estados.
Em geral, fraudadores valem-se de dois
artifícios para
lucrar com as ações judiciais. Primeiro, requerem o
benefício da justiça gratuita –
um direito garantido a quem não tem recursos – para livrar-se de gastos
processuais. No segundo passo, fazem constar em uma procuração
falsa que o
suposto cliente lhes dá plenos poderes para receber o valor pleiteado.
Os bancos afirmam não ter contabilizado o prejuízo causado pelas
fraudes, mas o impacto não seria desprezível. [Estas
informações se divulgadas poderiam abalar a confiança na segurança dos bancos e
incentivar novos crimes.] Até que a fraude seja descoberta, muitas ações dão
ganho de causa a pessoas que agiram de má-fé.
O próprio Judiciário tem dificuldade de reconhecer a ilegalidade
de eventuais ações. Quando se percebe cem ações desse tipo, já liquidou outras
cem. A situação tem ficado mais crítica nos últimos dois anos. Houve de fato aumento
no número de processos fraudulentos, mas os bancos também se
tornaram mais preparados para identificar essas situações.
No Rio de Janeiro, advogado foi identificado como autor
de 18 mil ações consideradas fraudulentas, muitas delas contra
bancos, segundo apurações conduzidas pelo Tribunal de Justiça do Estado
(TJ-RJ). Ele e outras nove pessoas tiveram a prisão preventiva decretada no fim
do ano passado, por fraudes que podem ter-lhes rendido R$ 10 milhões. Casal de
advogados, também denunciado, assinava um volume de sete mil processos
irregulares, segundo as investigações da Corte. As prisões foram revogadas a
pedido da defesa, mas os advogados continuam a responder a processos criminais.
De acordo com as apurações do tribunal, o
grupo acessava cadastros de pessoas com o nome sujo para entrar com ações de
indenização, falsificando documentos como procurações e comprovantes de
inscrição nos cadastros de devedores. Após a identificação da
quadrilha, o número de ações
distribuídas aos juízes de primeira instância no Rio caiu 30%. A
fraude é muito maior do que se supunha inicialmente. Alguns dos escritórios
envolvidos operam também em outros Estados.
No Paraná, a Polícia Federal investiga empresas que anunciam
serviços de recuperação de ativos, mas, na prática, acabam vendendo
ações judiciais –
comportamento proibido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considerado
captação indevida de clientela. Um inquérito policial foi motivado por suposta
quebra de sigilo bancário para obtenção de listas de correntistas e extratos.
Outra “cena
da vida brasileira” escandalosa foi narrada por Maíra Magro
(Valor, 07/03/12). Um sujeito diz que é
bilionário. Há sete anos, o gaúcho “humilde” de 79 anos, natural de
Rio Grande, cidadezinha de 200 mil habitantes no extremo Sul do país, recorre a
diferentes tribunais de Justiça na tentativa de receber do Banco do Brasil (BB)
mais de R$ 15 bilhões.
Ele alega que o banco bloqueou sua renda, conquistada ao longo
dos anos com investimentos diversificados: venda de pedras preciosas, de
títulos da dívida externa, de patentes de invenções e incursões nos setores de
hotelaria, agropecuária e mineração. O caso já foi parar na Presidência da
República e no Banco Central, em cartas enviadas por ele e pedidos de resposta
ao BB. O caso vem movimentando times de advogados de diferentes regiões do
país.
A primeira investida foi em Alagoas, em 2005. Ele conseguiu uma
liminar obrigando a instituição financeira a transferir R$ 84 milhões a uma
conta em seu nome. Por pouco, não ficou com o dinheiro. O banco conseguiu
reverter a decisão.
Ele fez nova tentativa em Goiás, alegando “bloqueio
administrativo” de seu crédito. Juntou ao processo suposto extrato com saldo de
R$ 4,7 bilhões. Em 2008, esclareceu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal
que o bloqueio se devia a uma investigação sobre lavagem de dinheiro, motivada
pelo tamanho de sua riqueza. Teve o cuidado de provar que a quantia constava em
sua declaração de Imposto de Renda – o tributo não foi recolhido, ressalvou,
porque o banco teria confiscado o dinheiro.
Frente à sua insistência, a Justiça de Brasília condenou o Banco
do Brasil a apresentar os documentos pleiteados por ele. A instituição alegou
em seu recurso que se tratava de tarefa impossível: embora o correntista fosse
verdadeiro, o extrato estaria mais próximo do zero que da casa do bilhão.
Como turista do Judiciário, o gaúcho fez nova parada na Justiça
de Porto Alegre, pedindo ao banco, desta vez, indenização por danos morais por
bloquear sua fortuna. Não teve sucesso: faltou-lhe dinheiro para
pagar as custas do processo.
Novamente em Brasília, a juíza da 11ª Vara Cível pediu
providências à Receita Federal por estranhar os fatos descritos na ação.
Enquanto a declaração de IR do gaúcho dava conta de saldos bilionários, sua
renda anual era inferior a R$ 22 mil, segundo dados da ação.
Ele não se intimidou e recorreu à Justiça paulista. Desta vez, a
inicial veio com o nome de Dercy Amor em vez de Percy Anor! No novo processo,
apresentado no fim de 2010, ele diz que tem instrução escolar precária, está
com a saúde frágil e em estado de penúria. Relata que há mais de dez anos teve
certa quantia bilionária depositada em sua conta, mas o banco, de forma
arbitrária, não permite o levantamento. Como o valor estaria em sua posse há
mais de cinco anos, seria beneficiado pelo usucapião.
Em novembro, o suposto bilionário recorreu à presidente Dilma
Rousseff. Enviou-lhe carta pedindo consulta “sob sigilo” e o desbloqueio de sua
conta no Banco do Brasil. Alegou desta vez que “rupturas internas entre
investidores” causaram o extravio de centenas de documentos, impossibilitando
demonstrar à instituição bancária “os fatos legais da origem dos recursos
depositados.” A essa altura, segundo dados mencionados na carta, o valor já
teria dobrado: passaria de R$ 34,2 bilhões.
Recentemente, episódio semelhante a esse foi além da dor de
cabeça causada ao banco e seus advogados: gerou polêmica até no Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), colocando em lados opostos a corregedora, ministra
Eliana Calmon, e entidades da magistratura.
No fim de 2010, Eliana suspendeu uma decisão da juíza Vera
Araújo de Souza, da 5ª Vara Cível de Belém do Pará, que obrigava o Banco do
Brasil a bloquear R$ 2,3 bilhões de sua receita. O valor era pleiteado por um cidadão que vivia de forma
modesta na cidade de Tatuí, no interior paulista, e alegava ser dono do
dinheiro. O próximo passo era a transferência do montante para sua conta
corrente. De acordo com ele, o valor estava em seu nome havia mais de cinco
anos, o que caracterizaria usucapião.
A liminar bloqueando a quantia no Banco do Brasil foi confirmada
no Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA). O banco tentou reverter o caso, mas
como não teve sucesso recorreu ao CNJ pedindo a suspensão da liminar.
A ministra Eliana Calmon aceitou o pedido do banco e tornou a
decisão sem efeitos. “Ficou muito claro que o Judiciário estava sendo usado
para um golpe”, declarou na época. Apesar de ter evitado o
saque do dinheiro, a decisão rendeu graves acusações de parte da magistratura
contra a ministra. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) enviou uma
carta aos juízes do país dizendo que a corregedora estaria ameaçando a
independência dos magistrados, e fez uma representação contra Eliana no Supremo
Tribunal Federal (STF) e no CNJ.
O desfecho mostrou, no entanto, que a
corregedora tinha razão. No começo deste ano, a polícia de São
Paulo prendeu o fulano, também conhecido como Chico da Fossa ou Mineirinho, e
mais quatro pessoas, apontadas como integrantes de uma quadrilha especializada
em fraudes bancárias. O grupo foi autuado por falsificação de documentos,
fraude processual e formação de quadrilha.
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