domingo, 3 de junho de 2012

Sobre a reforma do currículo do curso de Direito da FDRP I

Como ainda não possuo perfil no Facebook, estou colocando aqui a minha opinião a respeito da proposta de reforma curricular apresentada pelo Prof. Nuno para o DFB. Se tiverem interesse para ir até o fim, perceberão que me oponho frontalmente ao projeto (pelo menos por enquanto).


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Prezado Nuno,
Sem a pretensão de fundamentar devidamente o que penso sobre esse tema, gostaria simplesmente de expor algumas ideias, por enquanto muito intuitivas, que pretendem somente lançar perguntas e provocações, que poderão, espero, dar subsídios para novas reflexões.
Dito isso, permita-me, pelo menos num primeiro momento, discordar da sua proposta.
Em primeiro lugar, questiono a classificação que separa as disciplinas zetéticas das outras, supostamente técnicas ou dogmáticas. Sob o meu ponto de vista como aluno, ao contrário do que essa classificação faria supor, percebo disciplinas como direito tributário como “zetéticas”, ao passo que sociologia, passado aos alunos como exposição de “doutrinas sociológicas”, aparece para mim como uma disciplina mais dogmática. Me parece que a caracterização das disciplinas com zetéticas ou dogmáticas é muito mais uma escolha do professor que as ministra do que o conteúdo programático propriamente dito. Aliás, o próprio conceito de “professor-doutor” universitário, independentemente da disciplina que ministre, já implica numa postura crítica diante do conhecimento que transmite, o que faz da sua disciplina uma disciplina “zetética”, sob um certo ponto de vista. Em poucas palavras, não creio que a disputa em torno do que seja uma "disciplina zetética" esteja bem resolvida.
Mesmo considerando válida, porém, a divisão que você propõe entre as "disciplinas não-zetéticas" e o que  chama de "disciplinas zetéticas", não vejo motivo para a exclusão das disciplinas ministradas pela FEA do rol de disciplinas obrigatórias do 1º ano, especialmente quando mantidas disciplinas “nada-zetéticas” como Direito Romano. Princípios de economia, mesmo na vertente teórica mais tecnicista e matematizada, contribui para um caráter mais zetético ao curso como um todo, pois apresenta uma forma de ver a realidade social e o próprio direito de uma forma conflitante e muitas vezes incompatível com a lógica massivamente reproduzida no nosso curso pela lógica do direito positivo/privatista/romanístico.
Além disso, detecto a carência dos alunos com relação aos conceitos econômicos básicos para a compreensão de outras disciplinas obrigatórias, em especial quando estudadas à luz dos conflitos judiciais (e não à luz de um manual simplificado), como “Teoria da regulação e organização industrial”, “direito econômico”, “direito concorrencial”, dentre outras, ainda não oferecidas no nosso currículo (como teoria dos jogos).
Como primeira impressão, sou cético e contrário às iniciativas voltadas a fazer o nosso curso convergir com aquele oferecido pela São Francisco, inclusive quanto à forma de distribuição das disciplinas obrigatórias. Considero-o excessivamente “autista”, no sentido em que desconsidera as principais contribuições, especialmente as mais recentes, das outras ciências sociais. Dito simplificadamente e a título de exemplo, não se pode entender o papel do direito enquanto instrumento de política pública sem entender conceitos como eficácia, eficiência, externalidades, estruturas de mercado e sobre os mecanismos existentes nessas ciências para identificá-los e mensurá-los. As disciplinas oferecidas pela FEA, na minha forma de ver, servem para diminuir esse “fosso” em que os juristas historicamente se meteram.
Aumentar o caráter zetético do curso de direito, portanto, passa pela disposição de oferecer aos alunos visões ao mesmo tempo conflitantes e complementares a respeito da realidade social, de onde emerge o que chamamos de “direito”. Visões que não sejam simplesmente a "minha" ou a "sua", mas aquelas que vão se consolidando no ambiente acadêmico no sentido mais amplo, incorporando o aprendizado acumulado nas mais diversas áreas do conhecimento.
Entendo a sua perspectiva de professor de filosofia que vê tão pouco espaço na grade de disciplinas para as tão importantes disciplinas filosóficas. Entendo ainda a resistência dos nossos professores de dar aulas na FEA e a resistência dos professores da FEA de dar aulas aqui na FDRP. Influenciados como somos pelos estímulos sociais, o desprezo dos alunos que são obrigados a cursar disciplinas que aparentemente não têm conexão com suas áreas de formação é uma força que dificilmente pode ser resistida no processo de reformulação do Projeto Pedagógico. Em outras palavras, imagino ser de interesse de todos os professores do DFB acabar com as aulas na FEA e com as aulas da FEA na FDRP. É um caminho certamente mais cômodo e fácil para todos.     
Por outro lado, não vejo esperança num contexto em que multiplicamos os créditos obrigatórios de filosofia simplesmente porque os professores do departamento são professores de filosofia em prejuízo de outras importantes disciplinas básicas já disponibilizadas no nosso PPP, até porque me parece contraditório que se considere que a fonte do saber filosófico seja o conteúdo programático decidido pelos professores nas ementas das disciplinas, e não nossas próprias experiências, desejos e iniciativas.
Esse, porém, é um posicionamento inicial. Assim, estou à disposição para outras e novas discussões sobre esse tema.
Grande abraço,
Charles.
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Caros Colegas e representantes discente do Departamento, bom dia.

Como temos discutido em nossas reuniões, precisamos repensar a contribuição de nosso Departamento à formação oferecida pela FDRP, agora que o curso se prepara para formar a primeira turma.

Gostaria de lançar uma contribuição.
Primeiro, uma comparação com a FD. A FD fez uma reforma curricular em 2008, que diminuiu as disciplinas chamada zetéticas - elas são hoje menos presentes do que eram quando eu fiz o curso, na década de 90, por exemplo. Mesmo assim, a presença das disciplinas formativas básicas, e especialmente das zetéticas (filosofia, teoria do direito, história, economia e sociologia) é proporcionalmente superior à nossa na FDRP.
A FD tem 149 créditos em disciplinas obrigatórias, e o aluno deve cursar mais 81 créditos, no mínimo, em optativas. Vamos focar nas obrigatórias. 31 créditos são em História, Filosofia, Teoria do Direito, Economia e Sociologia. Cerca de 20% do total de obrigatórias.
Na FDRP, temos 220 créditos em disciplinas obrigatórias, sendo 38 créditos oferecidos pelos DFB no primeiro ano, onde se concentram. Cerca de 17% do total de obrigatórias.
Mas de História, Filosofia, Teoria do Direito, Economia e Sociologia, são apenas 28 créditos - o restante é Idioma Instrumental, Matemática e Contabilidade. Nas chamadas zetéticas, então, temos cercas de 12% do curso.
Proporcionalmente, nosso curso tem pouco a mais que a metade da formação humanística básica, em comparação à FD.
Se analisarmos o sistema de optativas deles (que é mais interessante porque o aluno pode começar a escolher o que fazer desde o primeiro ano, quando já há optativas), veremos que as disciplinas zetéticas assumem, lá, ainda maior importância na formação total do aluno. Já nós, como sabemos, temos tido dificuldades em oferecer optativas. 
Acho que precisamos discutir a opção do atual currículo por matemática, microeconomia, contabilidade e idioma, eliminando algumas disciplinas, redimensionando sua carga horária ou tornando outras optativas, abrindo espaço para temas da formação humanística que não são abordados hoje.
Numa visão inicial, poderíamos abrir espaço para 5 créditos no primeiro semestre e 8 no segundo, para as zetéticas. Minha sugestão inicial é eliminar algumas das oferecidas pela FEA, o que nos possibilita negociar com eles uma vaga de volta - não mais do que isso precisaríamos para deixar o corpo docente redimensionado para a nova grade do DFB.
São apenas possibilidades, entre muitas outras, as que coloco no quadro abaixo, para tentar pensar como há espaço para melhorar a presença das zetéticas. Precisamos é claro discutir em conjunto também quais seriam as novas.
Estes números que apresentei acima são aproximados, deve haver alguns erros pequenos. É apenas uma ideia geral.
Poderíamos fazer um encontro para discutir essas coisas?
Cordial abraço,
Nuno
Estrutura Curricular do Curso - dfb no 1 ano 
1º Semestre hoje alteração possível
DFB1001 Introdução ao Estudo do Direito 4 créditos (60 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB1002 Filosofia Geral: a Ética 2 créditos (30 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB1003 Idioma Instrumental I 2 créditos (30 h) OBRIGATÓRIA OPTATIVA (5 ano)
DFB1004 Sociologia Geral 2 créditos (30 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB1007 Matemática para Advogados 2 créditos (30 h) OBRIGATÓRIA Eliminar (pode ser feita como optativa na FEA)
DFB1008 Direito Romano 4 créditos (60 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB2001 Lógica e Epistemologia Jurídica 3 créditos (45 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
COM REDUÇÃO DE CARGA – para 2 HORAS SEMANAIS
DFB2006 Economia para Advogados: Microeconomia 2 créditos (30 h) OBRIGATÓRIA Eliminar (pode ser feita como optativa na FEA)
Espaço surgido para criação de novas disciplinas: 5 créditos (4 da fea eliminados,e 1 do dfb transformado)
2º Semestre 
DFB1006 Economia para Advogados: Macroeconomia 3 créditos (45 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB2002 História do Direito Ocid. E Form. Do Direito Bras. 4 créditos (60 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB2003 Sociologia do Direito 3 créditos (45 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
DFB2004 Idioma Instrumental II 2 créditos (30 h) OBRIGATÓRIA OPTATIVA (5 ano)
DFB2005 Contabilidade para Advogados 4 créditos (60 h) OBRIGATÓRIA Eliminar (pode ser feita como optativa na FEA)
DFB2008 Filosofia do Direito 4 créditos (60 h) OBRIGATÓRIA OBRIGATÓRIA
COM REDUÇÃO DE CARGA – para 2 HORAS SEMANAIS
Espaço surgido para criação de novas disciplinas: 8 créditos
(4 da fea, e 4 do dfb transformados)

Estes números que apresentei acima são aproximados, deve haver alguns erros pequenos. É apenas uma ideia geral.
Poderíamos fazer um encontro para discutir essas coisas?

Cordial abraço,
Nuno

terça-feira, 8 de maio de 2012

Em sua primeira aparição, FDRP figura entre as dez escolas que mais aprovaram no Exame Nacional da OAB



A parcela da primeira turma da FDRP que, no início do seu 5º ano, resolveu prestar o Exame da OAB, não fez feio entre as principais faculdades brasileiras de direito.
Com 17 dos 22 candidatos aprovados, a turma conseguiu o notável feito de colocar a escola entre as dez que mais aprovaram na prova nacional.
Mesmo considerando o pequeno número de alunos que se inscreveu nessa primeira edição de 2012, o resultado mostra-se importante especialmente por representar a excelência de uma jovem escola na seleta comunidade das melhores do país, num universo de mais de 1000 faculdades de direito que dão ao Brasil o famoso título de “país dos bacharéis”.
Destacam-se ainda as faculdades mineiras nesta edição do exame, das quais quatro figuraram no ranking das melhores. A Universidade Federal de Juiz de Fora, com 86,27% de aprovação; a Universidade Federal de Viçosa, com 80% de aprovação, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com 76,55% de aprovação e a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com 69,09% de aprovação. 
Também surpreende a ausência de escolas de grande qualidade e tradição, como a PUC-SP, o Mackenzie, a UFRJ, a UFSC, a UFPR, a UFPel dentre outras.
Abaixo, o ranking divulgado pela OAB.



terça-feira, 17 de abril de 2012

Questionamentos dos alunos da São Francisco sobre o seu Projeto Pedagógico


Como se observa do texto que reproduzo aqui, os alunos da São Francisco também estão em pleno processo de avaliação e crítica da sua grade curricular, projeto pedagógico e metodologia de ensino que a escola tem empregado.

O critério utilizado para fazê-lo, ao mesmo tempo que levanta críticas, permite, por outro lado, evidenciar diferenças em relação à outras escolas de prestígio que contribuem para desmistificar dogmas que perpetuam o anacronismo do ensino jurídico brasileiro, talhado em grande medida pela própria escola paulistana.

Aqui em Ribeirão, apesar da nossa proximidade geográfica com outras unidades com as quais poderiam ser exploradas parcerias para combater o autismo metodológico em que nos metemos (como a FEA, a Psico e a matemática), muitos alunos ainda lutam para tornar nosso curso mais "franciscano".

Acreditamos na predominância das disciplinas dogmáticas, considerando as outras meras "perfumarias".

Reclamamos de ser muito exigidos na disciplina de matemática financeira, considerando absurdo que o professor da FEA exija o mesmo de nós em relação ao que cobra dos alunos da sua unidade.

Reclamamos que a disciplina de contabilidade seja obrigatória. 

Reclamamos das disciplinas de micro e macroeconomia. Questionamos a necessidade de aprender os seus conceitos.

Reclamamos do curso integral. 

Queremos mais tempo para estagiar.

E relativizamos a importância do docente em dedicação exclusiva.

Para combater essa inocente ignorância servem levantamentos como o que foi realizado pelos representantes da São Francisco.

Parabéns aos colegas pela iniciativa.

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De fora para dentro: Um novo currículo para o curso de direito da USP
                   Texto escrito pelos estudantes do Grupo Universidade Crítica, atual gestão da Representação Discente da Faculdade de Direito da USP.

A Faculdade de Direito da USP vem rediscutindo com intensidade sua Matriz Curricular e Projeto Político-Pedagógico (PPP). A demanda da aprovação de uma nova grade, estruturada por um Projeto Político-Pedagógico, se deu, principalmente, pela aprovação da mal planejada grade de 2007, que vem causando transtorno na vida dos estudantes desde sua implementação em 2008.
Para a reforma ocorrer, no entanto, faz-se necessário um estudo profundo e pedagógico sobre o que deve constar num currículo de Direito, bem como aplicação das Diretrizes Curriculares Nacionais, que já descrevem na forma de Resolução, alguns pontos fundamentais que um curso de Direito deve ter (Resolução CNE/CES N° 9, de 29 de setembro de 2004).
No intuito de dar um caráter prático e palpável das discussões, foi feito em 2011 um levantamento dos considerados melhores cursos de Direito do mundo. Harvard (EUA), Oxford (Inglaterra), Tor Vergata (Itália), Heidelberg (Alemanha), Los Andes (Colômbia) e Coimbra (Portugal), foram algumas das Faculdades estudadas para tal pesquisa.
O estudo foi feito no âmbito da Subcomissão de Reforma da Grade e do Projeto Político-Pedagógico, submetida à Comissão de Graduação, e se baseou na resposta a 10 questões que refletiam de forma abrangente, mas também prática, os pontos principais da estruturação de um curso de Direito. Tais perguntas tinham por função dar um norte à pesquisa. Eram elas:
1)      A graduação em direito em sua instituição é em tempo integral ou em tempo parcial?
2)      Qual é, em média, a porcentagem de disciplinas obrigatórias ao longo do curso de graduação em direito? A partir de que momento o aluno pode escolher disciplinas optativas?
3)      Quantas horas por semana, em média, um aluno de graduação em direito fica em sala de aula?
4)      Qual é a porcentagem média de disciplinas que possuem oficinas ou seminários em grupos menores de alunos? Que porcentagem aproximada de tempo elas ocupam em relação ao total de horas de aula do curso?
5)      Quantos alunos, em média, há em uma sala de aula (ou turma) ao longo da graduação em direito?
6)      Qual é, em média, a carga horária semanal de aulas de um professor (disciplinas de graduação apenas)?
7)      Quantas disciplinas de graduação, em média, estão sob a responsabilidade de cada docente em cada semestre ou período letivo?
8)      Qual a porcentagem de docentes em dedicação integral à docência e à pesquisa?
9)      Qual a porcentagem aproximada da grade curricular não correspondente a matérias dogmáticas?
10)   Atividades de pesquisa e extensão são obrigatórias no currículo do aluno? Quantos créditos relativos a atividades de pesquisa e extensão o aluno deve cumprir?
Após a obtenção das respostas por meio dos sites das Faculdades internacionais e também com a ajuda de alguns estudantes e docentes que estiveram no exterior e compartilharam suas experiências, fez-se um estudo comparativo entre os diferentes cursos de Direito, incluindo o da Universidade de São Paulo. Foram feitos gráficos e, ao fim, montou-se uma apresentação para ampla exposição entre os estudantes e docentes.






O resultado mostrou a discrepância existente entre o curso de Direito do Largo de São Francisco, mais tradicional do País, e os outros cursos de Direito renomados do exterior, principalmente no que tange a quantidade de horas que um aluno tem aulas em sala de aula, infraestrutura, interdisciplinaridade das disciplinas e obrigatoriedade de atividades como extensão e pesquisa.
Cabe frisar que o objetivo desse levantamento nunca foi o de fazer um “recorta e cola” das melhores características internacionais e aplicá-las ao curso de Direito da USP, mas mostrar a desproporção entre os cursos do exterior e o da São Francisco. Esse estudo combate o senso comum, disseminado entre estudantes e docentes, que confortavelmente crê na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco como uma instituição de referência e destaque, provando, ao contrário disso, a necessidade e urgência de uma ampla reestrutração curricular.
Ao se pensar um novo currículo para cursos da USP é preciso levar em conta seu caráter público. Os estudantes precisam ter consciência da sociedade que os rodeia e que financia seus estudos, criando um vínculo de responsabilidade para com a população de São Paulo e do resto do País. Daí a necessidade de se pensar um curso crítico, social, que vise à melhora do País e lute para o fim das mazelas como a miséria, fome, extrema desigualdade, falta de acesso à educação e sistema de saúde, entre outros.
Para os mais céticos, não se trata aqui de utopias socialistas, mas de uma conscientização do que ocorre no Brasil e a noção de agente público que um estudante da universidade pública tem. Um curso de Direito, ou qualquer outro, precisa se sensibilizar com a sociedade e questionar: o que o Brasil precisa? A resposta deverá ser o princípio norteador dos cursos, para tentar acabar com os muros, também invisíveis, de uma universidade que pertence a todos e que se fecha cada vez mais para o que está fora dela.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A USP muda a pós-graduação


O Estado de S.Paulo - 10/04/2012
A Universidade de São Paulo (USP) decidiu reestruturar o sistema próprio de avaliação de seus cursos de mestrado e doutorado, vigente há anos, adotando um modelo parecido com o que vem sendo usado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Com cerca de 26,5 mil alunos de pós-graduação matriculados em seus dez campi, a maior universidade brasileira mantém 308 mestrados e 299 doutorados, e é responsável pela formação de 20% de todos os doutores do País.
No ano passado, a instituição - que tem 5.865 professores, dos quais 84,8% trabalhando em regime de tempo integral - outorgou 3.492 títulos de mestre e 2.338 títulos de doutor. Segundo o Ranking Acadêmico de Universidades do Mundo (ARWU, na sigla em inglês), a USP é a universidade que mais vem formando doutores em todo o mundo. No índice geral, que leva em consideração a qualidade, ela está entre as 150 melhores.
Atualmente, a USP promove uma avaliação trienal de seus programas de pós-graduação, mas não fiscaliza curso por curso. Já a Capes, que é o órgão federal responsável pela pós-graduação no País, avalia não apenas os programas de pós-graduação, mas todos os cursos, atribuindo notas a cada um deles e publicando a lista dos cursos recomendados por sua excelência. Dos 239 programas de pós-graduação oferecidos pela USP no ano passado, 37 receberam a nota máxima da Capes, que vai de zero a sete; 49 ficaram com a nota 6; 85 obtiveram a nota 5; 55 receberam a nota 4; e 13, a nota 3. De 2011 para 2012, foram criados mais 3 programas.
"A USP tem um problema. Ela é grande demais, atua em muitas áreas, diferentemente de outras instituições mundiais de renome. E, por sermos grandes, precisamos de uma avaliação interna como são as externas, só que mais amplas", diz o pró-reitor de pós-graduação, Vahan Agopyan.
As duas avaliações são complementares. A avaliação interna permite à instituição refinar a avaliação externa, fornecendo informações precisas sobre o que deve ser mudado, em matéria de projetos pedagógicos, linhas de pesquisa e criação de novos cursos. "A avaliação da Capes é excelente, mas a USP tem de definir o que quer", afirma Agopyan. Segundo ele, em vez de elaborar um ranking de programas de pós-graduação, como faz a Capes, a USP pretende usar a avaliação interna para rever as diretrizes de cada um de seus cursos.
O novo sistema de avaliação ainda está sendo discutido no Conselho de Pós-Graduação, juntamente com a minuta de um novo regimento. A ideia é submetê-lo à votação no colegiado ainda este mês. Se for aprovado, o projeto segue para o Conselho Universitário. Pelas novas regras, que devem entrar em vigor a partir de 2013, as avaliações deixam de ser trienais e passam a ser anuais. As unidades da USP também terão maior autonomia, como forma de estimulá-las a promover uma atualização permanente do currículo dos cursos de mestrado e de doutorado e a elevar o nível de preparo dos pós-graduandos. A ideia é formar mestres e doutores com o "perfil de líder".
A proposta também prevê que o mestrando ou doutorando seja submetido a uma avaliação, um ano e meio após ter se matriculado na pós-graduação. E, no final do curso e das atividades de pesquisa, antes de ser arguido oralmente por uma banca examinadora, sua dissertação ou tese será objeto de um relatório escrito. A inovação visa a estimular o pós-graduando a se preparar melhor para a arguição. A proposta prevê ainda que docentes sem título de doutor possam, em casos excepcionais, integrar programas de pós-graduação da USP.
Adotada pela Capes, que foi criada em 1951, quando o Brasil contava apenas 60 mil alunos no ensino superior, a avaliação dos cursos de mestrado e doutorado foi decisiva para oferecer professores e cientistas qualificados para as instituições de ensino superior. A comunidade acadêmica sempre reconheceu a importância das avaliações, mas jamais deixou de advertir para o risco de uma burocratização excessiva das atividades docentes e de pesquisa. É esse risco que a USP tem de evitar.

Brasil negocia instalação de sede do MIT no País


O Estado de São Paulo - 10/04/2012
BOSTON - O governo brasileiro e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), umas das mais respeitadas instituições de pesquisa e inovação dos Estados Unidos, estão em negociação a abrir uma sede da instituição no Brasil.
O convite foi feito à instituição pelo governo brasileiro e a informação foi divulgada nesta terça-feira, 10, durante a visita da presidente Dilma Rousseff à sede do instituto, na cidade de Cambridge, próxima a Boston.
Segundo o ministro da Educação, Aloízio Mercadante, as negociações para a abertura da possível sede do MIT no Brasil estão em andamento e ainda não há previsão sobre a cidade onde ela ficará.
"Estamos agora concluindo as negociações e a presidenta deu integral apoio. Vamos ter uma escola do MIT no Brasil.”
Ainda de acordo com Mercadante, também não há previsão da data de quando o centro poderá ser inaugurado.
"(Para) Tudo no Brasil nós temos pressa. Então depende do ritmo deles, o nosso vai ser bem acelerado", disse.

ITA
Também nesta terça-feira, a presidente Dilma Rousseff participou da assinatura de dois acordos de cooperação entre a Escola de Engenharia do MIT e o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), que tem sede em São José dos Campos, São Paulo.
Os termos do primeiro acordo de intenções ainda serão concluídos nos próximos meses, mas devem envolver o intercâmbio de estudantes, professores e pesquisadores, pesquisas conjuntas e o desenvolvimento de novos programas educacionais.
De acordo com Mercadante, o convênio também prevê a criação de um centro de inovação na sede do ITA.
Já o segundo convênio envolve a concessão de 50 bolsas para doutores brasileiros estudarem no MIT.

Parceria 

No segundo dia de sua visita oficial aos Estados Unidos, a presidente Dilma Rousseff prioriza uma agenda voltada principalmente para os temas de educação, tecnologia e inovação, com especial atenção à divulgação do programa Ciência sem Fronteiras, que prevê a concessão de 100 mil bolsas de estudo para brasileiros no exterior.
Em um discurso na sede do MIT, Dilma voltou a citar uma "parceria para o século 21" entre Brasil e Estados Unidos.
"Acredito que a parceria que nós temos para o século 21 está baseada no conhecimento. Este século é o século em que o conhecimento e a capacidade de cada uma das pessoas importará na construção de um mundo mais rico, mas também um mundo mais pacífico", disse.
Na manhã desta terça-feira, Dilma visitou o Media Lab do MIT. O laboratório reúne artistas, engenheiros e cientistas que usam abordagens pouco ortodoxas para desenvolver projetos em áreas como neuroengenharia, aprendizado e desenvolvimento de veículos.
A presidente também participou de uma mesa-redonda com cientistas e pesquisadores na sede do instituto.
Segundo a direção da instituição, há um total de 58 estudantes brasileiros atualmente no MIT, sendo 10 de graduação, 40 de de pós-graduação e oito visitantes. Há também sete brasileiros em programas de pós-doutorado e três professores do Brasil.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Crime organizado no Poder Judiciário


Por Fernando Nogueira da Costa, professor do IE-UNICAMP e ex-diretor executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos.
Umas das “cenas da vida brasileira” que antes eu desconhecia e mais me impressionaram, durante 4,5 anos em que fui diretor-executivo da FEBRABAN (2003-2007), foi ser informado sobre as quadrilhas de crime organizado que agem no Poder Judiciário para achacar bancos. Bancos são responsáveis por recursos de terceiros e repassam todas as perdas, inclusive as de origem criminosa, para os juros e as tarifas cobradas, ou seja, todos os clientes sofrem com esses crimes. Maíra Magro (Valor, 07/03/12) informa a respeito.
A cada ano, milhares de pessoas no país têm o nome utilizado em ações judiciais fraudulentas contra bancos, sem saber disso. Elas são vítimas de quadrilhas formadas por advogados que usam o Judiciário para praticar golpes. Atualmente, entre 10% e 15% dos processos judiciais contra as maiores instituições financeiras do país envolvem algum tipo de fraude, segundo estimativa da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). O problema mobiliza a Polícia Federal e o Ministério Público, em investigações que já levaram à prisão, no Rio de Janeiro e em São Paulo, de grupos especializados no crime de ludibriar tribunais.
Um dos golpes mais comuns envolve pedidos de correção inflacionária durante os planos econômicos das décadas de 1980 e 1990. A discussão legítima acabou desvirtuada em milhares de processos, muitos deles em nome de pessoas que nunca imaginaram acionar o Judiciário com esse propósito. Outra modalidade ficou conhecida como indústria do “limpe seu nome”. Profissionais mal intencionados forjam documentos alegando inscrições indevidas em cadastros de devedores como SPC e Serasa, para depois reclamar danos morais.
Usaram nome, CPF e extratos bancários, por exemplo, para pleitear perdas do plano Verão de morador do Rio de Janeiro. Ele não sabia que figurava como autor de um processo contra o Itaú em Limeira, no interior de São Paulo, onde nunca residiu. O banco foi condenado na Justiça a pagar R$ 177 mil ao suposto autor da ação. Mas quem recebeu o dinheiro foi a advogada que assinou o pedido.
Em outro tipo de fraude, advogados entram com centenas de ações de exibição de documentos contra um mesmo banco, em diferentes comarcas. Chegam a pedir a apresentação de todos os extratos de um correntista nos últimos 20 anos, com a justificativa de verificar possíveis cobranças ilegais. Diante da enormidade de processos, os bancos nem sempre conseguem cumprir o prazo definido pelos juízes, apenas alguns dias, para entregar informações de época em que os arquivos ainda eram em papel. Acabam condenados a pagar honorários aos advogados que entraram com as ações, ainda que não haja cobrança irregular. Como as ações são ajuizadas em massa, o prejuízo pode ser considerável.
O objetivo comum nesses processos é induzir o Judiciário a erro, montando caso falso. Em algumas cidades, se os processos fossem verdadeiros, mais de 100% da população adulta estaria movendo ações contra as instituições financeiras. Tanto o banco como o cliente são vítimas.
As demandas são manipuladas com documentos falsos, ou pedidos repetidos de um mesmo autor, cujo nome é camuflado em grafias ligeiramente diferentes. Depois, advogados munidos de procurações também falsas levantam dinheiro em nome de terceiros. Geralmente há conluio, dificilmente essas fraudes são cometidas por uma pessoa sozinha. É preciso conhecimentos técnicos e a participação de atores nos ambientes onde elas são produzidas.
Quando a estratégia é descoberta pelo juiz de certa comarca, os advogados migram para outras, usando os mesmos artifícios. Juízes de boa-fé estão sendo enganados, imagine os de má-fé: estes não se enganam! Quando o magistrado honesto percebe o problema, a reação é imediata: as ações são declaradas improcedentes. Mas os advogados vão mudando de comarca, conforme a decisão do juiz.
Aposentada, moradora de Brasília, encontrou por acaso na internet duas ações ajuizadas em 2008 em nome de seu pai, que morreu 17 anos antes. Elas corriam nas cidades de Valinhos e Limeira, no interior de São Paulo, pedindo, novamente, a correção da poupança durante os planos econômicos. Além do gasto de tempo e dinheiro para lidar com a farsa, a família reclama do constrangimento: ver a imagem do pai, homem extremamente íntegro, ligada a bando de estelionatários.
A fraude surgiu depois que os bancos foram condenados, em ações coletivas no país, a repor aos poupadores perdas financeiras durante os planos Bresser, Verão e Collor. O assunto ainda será avaliado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o correntista beneficiado por sentenças coletivas definitivas pode receber as correções entrando com ações individuais. O direito, porém, acabou deturpado em inúmeros processos.
Determinada advogada é investigada por mover mais de 500 ações fraudulentas no interior paulista. Ela foi denunciada pelo Ministério Público, na 3ª Vara Criminal de Valinhos, por estelionato praticado de forma repetida – 193 vezes. Segundo o promotor que atuou na causa, os processos envolveriam mais de R$ 12 milhões, dos quais R$ 368 mil chegaram a ser retirados. Não se concluiu ainda nas investigações se houve conluio com outras pessoas, ou quebra de sigilo por funcionários do banco.
Em setembro, investigações da polícia e do Ministério Público em São Paulo levaram à prisão de dez pessoas acusadas de fraudar o Judiciário em ações de planos econômicos. Segundo a denúncia que corre na 1ª Vara Criminal de Avaré, no interior paulista, comprovou-se a existência de quadrilha organizada, comandada por advogado e inúmeros outros participantes. Este advogado já cumpriu dois mandatos como vereador na cidade de Lençóis Paulista. De acordo com o MP, a quadrilha conseguia ilegalmente bases de dados com informações bancárias de correntistas, e entrava com ações em nome dessas pessoas, usando documentos falsos.
Segundo as investigações, o grupo tentava levantar cerca de R$ 20 milhões em mais de 12 mil processos judiciais, em São Paulo e algumas comarcas de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. Os dados bancários sigilosos seriam obtidos por funcionários de empresas terceirizadas que prestavam serviços aos bancos, e teriam sido repassados a outros profissionais que operam de forma semelhante.
O dito cujo passou 37 dias na prisão. Agora está advogando normalmente, enquanto responde ao processo criminal em Avaré. Advogados que atuam em ações de planos econômicos têm acesso fácil a bases de dados de correntistas. Se você consultar advogados que mexem com expurgos, eles têm essas fontes. As pessoas oferecem as bases de dados e, se procurar, encontra até na internet. As bases de dados incluem “alguns bancos”. O advogado confirmou que tem milhares de processos contra bancos, e disse que muitos clientes são obtidos por meio do Instituto Nacional de Proteção e Defesa dos Direitos do Cidadão (Inapadec), que atua em três Estados.
Em geral, fraudadores valem-se de dois artifícios para lucrar com as ações judiciais. Primeiro, requerem o benefício da justiça gratuita – um direito garantido a quem não tem recursos – para livrar-se de gastos processuais. No segundo passo, fazem constar em uma procuração falsa que o suposto cliente lhes dá plenos poderes para receber o valor pleiteado.
Os bancos afirmam não ter contabilizado o prejuízo causado pelas fraudes, mas o impacto não seria desprezível. [Estas informações se divulgadas poderiam abalar a confiança na segurança dos bancos e incentivar novos crimes.] Até que a fraude seja descoberta, muitas ações dão ganho de causa a pessoas que agiram de má-fé.
O próprio Judiciário tem dificuldade de reconhecer a ilegalidade de eventuais ações. Quando se percebe cem ações desse tipo, já liquidou outras cem. A situação tem ficado mais crítica nos últimos dois anos. Houve de fato aumento no número de processos fraudulentos, mas os bancos também se tornaram mais preparados para identificar essas situações.
No Rio de Janeiro, advogado foi identificado como autor de 18 mil ações consideradas fraudulentas, muitas delas contra bancos, segundo apurações conduzidas pelo Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ). Ele e outras nove pessoas tiveram a prisão preventiva decretada no fim do ano passado, por fraudes que podem ter-lhes rendido R$ 10 milhões. Casal de advogados, também denunciado, assinava um volume de sete mil processos irregulares, segundo as investigações da Corte. As prisões foram revogadas a pedido da defesa, mas os advogados continuam a responder a processos criminais.
De acordo com as apurações do tribunal, o grupo acessava cadastros de pessoas com o nome sujo para entrar com ações de indenização, falsificando documentos como procurações e comprovantes de inscrição nos cadastros de devedores. Após a identificação da quadrilha, o número de ações distribuídas aos juízes de primeira instância no Rio caiu 30%. A fraude é muito maior do que se supunha inicialmente. Alguns dos escritórios envolvidos operam também em outros Estados.
No Paraná, a Polícia Federal investiga empresas que anunciam serviços de recuperação de ativos, mas, na prática, acabam vendendo ações judiciais – comportamento proibido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considerado captação indevida de clientela. Um inquérito policial foi motivado por suposta quebra de sigilo bancário para obtenção de listas de correntistas e extratos.
Outra “cena da vida brasileira” escandalosa foi narrada por Maíra Magro (Valor, 07/03/12). Um sujeito diz que é bilionário. Há sete anos, o gaúcho “humilde” de 79 anos, natural de Rio Grande, cidadezinha de 200 mil habitantes no extremo Sul do país, recorre a diferentes tribunais de Justiça na tentativa de receber do Banco do Brasil (BB) mais de R$ 15 bilhões.
Ele alega que o banco bloqueou sua renda, conquistada ao longo dos anos com investimentos diversificados: venda de pedras preciosas, de títulos da dívida externa, de patentes de invenções e incursões nos setores de hotelaria, agropecuária e mineração. O caso já foi parar na Presidência da República e no Banco Central, em cartas enviadas por ele e pedidos de resposta ao BB. O caso vem movimentando times de advogados de diferentes regiões do país.
A primeira investida foi em Alagoas, em 2005. Ele conseguiu uma liminar obrigando a instituição financeira a transferir R$ 84 milhões a uma conta em seu nome. Por pouco, não ficou com o dinheiro. O banco conseguiu reverter a decisão.
Ele fez nova tentativa em Goiás, alegando “bloqueio administrativo” de seu crédito. Juntou ao processo suposto extrato com saldo de R$ 4,7 bilhões. Em 2008, esclareceu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal que o bloqueio se devia a uma investigação sobre lavagem de dinheiro, motivada pelo tamanho de sua riqueza. Teve o cuidado de provar que a quantia constava em sua declaração de Imposto de Renda – o tributo não foi recolhido, ressalvou, porque o banco teria confiscado o dinheiro.
Frente à sua insistência, a Justiça de Brasília condenou o Banco do Brasil a apresentar os documentos pleiteados por ele. A instituição alegou em seu recurso que se tratava de tarefa impossível: embora o correntista fosse verdadeiro, o extrato estaria mais próximo do zero que da casa do bilhão.
Como turista do Judiciário, o gaúcho fez nova parada na Justiça de Porto Alegre, pedindo ao banco, desta vez, indenização por danos morais por bloquear sua fortuna. Não teve sucesso: faltou-lhe dinheiro para pagar as custas do processo.
Novamente em Brasília, a juíza da 11ª Vara Cível pediu providências à Receita Federal por estranhar os fatos descritos na ação. Enquanto a declaração de IR do gaúcho dava conta de saldos bilionários, sua renda anual era inferior a R$ 22 mil, segundo dados da ação.
Ele não se intimidou e recorreu à Justiça paulista. Desta vez, a inicial veio com o nome de Dercy Amor em vez de Percy Anor! No novo processo, apresentado no fim de 2010, ele diz que tem instrução escolar precária, está com a saúde frágil e em estado de penúria. Relata que há mais de dez anos teve certa quantia bilionária depositada em sua conta, mas o banco, de forma arbitrária, não permite o levantamento. Como o valor estaria em sua posse há mais de cinco anos, seria beneficiado pelo usucapião.
Em novembro, o suposto bilionário recorreu à presidente Dilma Rousseff. Enviou-lhe carta pedindo consulta “sob sigilo” e o desbloqueio de sua conta no Banco do Brasil. Alegou desta vez que “rupturas internas entre investidores” causaram o extravio de centenas de documentos, impossibilitando demonstrar à instituição bancária “os fatos legais da origem dos recursos depositados.” A essa altura, segundo dados mencionados na carta, o valor já teria dobrado: passaria de R$ 34,2 bilhões.
Recentemente, episódio semelhante a esse foi além da dor de cabeça causada ao banco e seus advogados: gerou polêmica até no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), colocando em lados opostos a corregedora, ministra Eliana Calmon, e entidades da magistratura.
No fim de 2010, Eliana suspendeu uma decisão da juíza Vera Araújo de Souza, da 5ª Vara Cível de Belém do Pará, que obrigava o Banco do Brasil a bloquear R$ 2,3 bilhões de sua receita. O valor era pleiteado por um cidadão que vivia de forma modesta na cidade de Tatuí, no interior paulista, e alegava ser dono do dinheiro. O próximo passo era a transferência do montante para sua conta corrente. De acordo com ele, o valor estava em seu nome havia mais de cinco anos, o que caracterizaria usucapião.
A liminar bloqueando a quantia no Banco do Brasil foi confirmada no Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA). O banco tentou reverter o caso, mas como não teve sucesso recorreu ao CNJ pedindo a suspensão da liminar.
A ministra Eliana Calmon aceitou o pedido do banco e tornou a decisão sem efeitos. “Ficou muito claro que o Judiciário estava sendo usado para um golpe”, declarou na época. Apesar de ter evitado o saque do dinheiro, a decisão rendeu graves acusações de parte da magistratura contra a ministra. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) enviou uma carta aos juízes do país dizendo que a corregedora estaria ameaçando a independência dos magistrados, e fez uma representação contra Eliana no Supremo Tribunal Federal (STF) e no CNJ.
O desfecho mostrou, no entanto, que a corregedora tinha razão. No começo deste ano, a polícia de São Paulo prendeu o fulano, também conhecido como Chico da Fossa ou Mineirinho, e mais quatro pessoas, apontadas como integrantes de uma quadrilha especializada em fraudes bancárias. O grupo foi autuado por falsificação de documentos, fraude processual e formação de quadrilha.

quarta-feira, 21 de março de 2012

"Eu não sou engenheiro": Por um ex-aluno da Poli


Por João Henrique Aurichio Crema
Em 2002 comecei a cursar Engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Tinha passado os últimos dois anos do colegial obcecado por obter melhores notas e aprender tudo o que o vestibular exigia.
O colégio onde estudei, o Agostiniano Mendel, estimulava os alunos do colegial a estudarem para suas pesadas semanas de provas bimestrais, com rankings de classificação em cada matéria do boletim em relação à própria turma e em relação ao ranking geral de alunos, que servia para classificar em qual sala cada um faria as provas. Entrei completamente no jogo e me esforçava para me manter sempre na primeira sala, no primeiro lugar da turma e entre os primeiros do ranking geral. Naquela época, a disputa me bastava para dar sentido à vida, sendo a grande meta final a entrada na USP.
Conheci grandes amigos no Mendel que mantenho até hoje, porém, essas metas de disputa e de entrada na Universidade eram tão fortes que deixei de desenvolver outros lados de minha vida. Raramente conversava com amigos fora do colégio, saía pouco, dificilmente pesquisava assuntos não relacionados ao vestibular, e se o fazia, sentia culpa de estar perdendo um tempo precioso que me ajudaria a subir no ranking da escola que me abriria mais um pouco a porta da Universidade.
Fazia uma lista de livros e filmes que poderia ler e assistir quando finalmente passasse no vestibular. Para mim, a Universidade representava a libertação dessa vida que havia sacrificado para entrar numa Universidade pública, com a garantia de um futuro profissional promissor. Saber que estava pronto para o vestibular me confortava, e não aguentava mais esperar para passar.
Não fazia a menor ideia de qual curso escolher. Entrei no colegial pensando em prestar Medicina, mas quando visitei a Faculdade de Medicina da USP e vi cachorros abertos sendo costurados, desmaiei na hora. Medicina era um desafio de se passar no vestibular, não tinha a ver com a minha vocação. Aos 17 anos, essa tal vocação era o mistério mais secreto: não fazia a mínima ideia do que queria como profissão, só sabia que queria passar na FUVEST. Conversei com a orientadora do colegial do Mendel, que me mostrou as profissões no Guia do Estudante, todas classificadas com carinhas. Minhas dúvidas eram tão grandes, que estava entre Economia (triste), Astronomia (triste) ou Cinema ou algo do tipo (não sabia o que era Audiovisual — triste). Ela, uma quarentona de óculos e de cabelos tingidos de loiro, simpática, me disse:
— Olha, João. Você vai muito bem de Exatas. Por que não fazer um curso amplo, com várias possibilidades. Por que não fazer Engenharia?
Ao colocar na página do guia, Engenharia tinha uma radiante carinha feliz. Meu melhor amigo da época também prestaria Engenharia, além de ter o modelo do primo engenheiro com uma bela carreira corporativa. Afinal de contas, ia bem de Exatas (mas sempre me senti mais seguro em Humanas), por que não usar essa capacidade para garantir uma carreira cada vez mais valorizada?
Apaixonei-me pelo campus do Butantã da USP. Fui a festas. Tive algumas paixões uspianas e até remo fiz por um tempo. Mas nunca me senti politécnico, desde a primeira aula, de Física, na qual o professor ficara indignado pela maioria dos estudantes terem chegado à Poli sem o conhecimento de Cálculo Diferencial e Integral. Tirei minha primeira nota vermelha da vida, logo na primeira prova de Álgebra Linear. Percebi que jamais seria um dos primeiros do ranking como era no colegial. Agora só haveria disciplinas de Exatas, tantas que não conseguiria acompanhar.
Na Poli, as semanas de provas marcavam os ciclos das vidas dos alunos. Três semanas de provas por semestre, com pesos gradualmente maiores para que poucos conseguissem fechar as notas antes do fim do semestre. Todos os 750 alunos entravam no ciclo básico e graças a uma média entre a nota da FUVEST e as notas de Engenharia, escolhiam a grande área (Mecânica, Elétrica, Química e Civil) no fim do segundo semestre. E no fim do quarto, a especialização da grande área. Ou seja, a competitividade que me motivava no colegial em busca da libertação universitária, continuava na Universidade. Mas dessa vez o efeito sobre mim foi contrário.
Juro que tentei entender com a profundidade devida todos os conteúdos que me bombardeavam todos os dias na Poli. Gostava muito de ler os textos sobre como os grandes gênios chegaram a descobertas em Matemática, Física, Química, etc. Adorava acompanhar as deduções, entender a sacada genial — existe uma forma de arte muito sutil nas descobertas científicas — porém, isso não interessava tanto nas provas da Poli. Na maioria das vezes eram cobradas aplicações dessas descobertas em malabarismos numéricos para se chegar às respostas de problemas, uma extensão dos malabarismos vazios cobrados no vestibular.
Eram famosas as coletâneas de provas de anos anteriores, vendidas no Xérox do Grêmio. Estudávamos através delas, muitas vezes sem ter a mínima ideia de onde surgiam as fórmulas e técnicas. Essa aplicação alienada, apenas para obtenção de notas em provas, me atormentava profundamente — mas demorei anos para entender isso.
Eram tantas provas; tão grande a pressão por notas; tão vazio o sentido de tudo aquilo, que trapacear era algo natural. Aprender a colar era uma estratégia de sobrevivência fundamental da vida politécnica.
Cola. Escrita sutilmente nas antigas carteiras de madeira maciça escura, com uma passada de leve de borracha para disfarçar. Escrita em papeizinhos de 1/8 de folha A4, escondidos no estojo, no corpo opaco da caneta, no bolso, no meio dos papeis de prova. Escrita no braço, com o risco do suor acabar com tudo. Escrita nas sofisticadas (para a época) calculadoras alfanuméricas HP, nas quais era possível armazenar páginas e mais páginas de texto e fórmulas, além de ser possível programar resoluções completas de modelos de exercícios (por isso eram proibidas em muitas provas). Papéis com resoluções inteiras de exercícios jogados de um estudante para o outro (alguns dividiam que parte da matéria estudar) e o bom e velho cochichar. Tínhamos uma ética própria na arte da cola. Não podíamos negar ao amigo. E jamais poderíamos dedar alguém, sempre encobrindo essas ações de guerrilha contra o ditatorial sistema de provas politécnico.
Coração acelerado ao ler as minúsculas letras no papelzinho e copiar na prova. Tentar aplicar, sentir dificuldade. Ter que sussurrar para alguém perguntando como começar a resolver tal problema. Passos lentos do professor atento a perscrutar a sala. Sensação de alívio ao finalmente resolver o maldito problema e me sentir próximo da aprovação em determinada disciplina. Bastava terminar a prova para todas aquelas fórmulas e técnicas abandonassem a mente.
Em vários momentos pensei em desistir da Poli, mas não fazia a menor ideia de onde iria. Apesar de todas essas dificuldades, meus colegas me davam um forte apoio. Pessoas inteligentíssimas que também buscavam como sobreviver naquela maluquice. A perspectiva profissional como engenheiro era ótima. Grandes oportunidades de emprego, com bons salários nos esperavam lá fora, no mercado de trabalho. Mais uma vez deixei de lado o presente, idealizando o futuro como Engenheiro formado numa das mais respeitadas Universidades da América Latina.
Consegui passar em praticamente todas as disciplinas do primeiro ano. Mesmo com minhas notas baixas, entrei na concorrida grande área Mecânica. Por algum tipo de visão de ficção científica de mundo futuro, cheio de robótica e sistemas automatizados, escolhi Engenharia Mecatrônica como minha especialização. E como estava cansado de ser dependente de meus pais, no fim do terceiro ano, decidi procurar estágio.
Em 2005 comecei o quarto ano na Engenharia Mecatrônica.  Na sexta-feira depois da semana do carnaval assisti à primeira aula de Eletrônica Digital com o professor Márcio Ishikawa, um sério japonês de óculos, 40 anos de idade e uma patente insatisfação com o jeitinho politécnico de aprovação nas disciplinas.
— Em minha aula os senhores não proliferarão a mediocridade. Aqui me comprometo ao máximo de atenção e dedicação ao ensino dos senhores, mas exijo também o máximo dos senhores em relação à minha disciplina. Quero que saiam desse curso não só com uma nota, mas com o conhecimento correto de Eletrônica Digital. Concordam?
Todos concordaram, inclusive eu. Ishikawa deu um sorriso, orgulhoso.
— Então temos um compromisso verbal sobre dedicação à disciplina que ministro. Contudo, isso não é suficiente. Proponho um contrato, com regras de direitos e deveres meus e dos alunos. Para tal, quero que os senhores escolham um representante para anotar todas as cláusulas. Imprimo o contrato na semana que vem e todos nós assinamos.
Otávio se voluntariou. Não havia outros concorrentes e confiávamos nele. Era um cara tranquilo que tocava violão e se dedicava à namorada. Otávio anotou as obrigações do professor de sempre ensinar com a máxima qualidade, de estar disponível um dia por semana para dúvidas, etc; e dos alunos, de chegarem no horário, realizarem as listas de exercícios, de manterem disciplina, etc, etc… E de não trapacearem.
Na sexta seguinte todos assinamos o contrato, uma cópia ficou com Ishikawa e outra ficou com Otávio. Mal sabia que aquelas aulas nas tardes de sexta provocariam a maior reviravolta da minha vida, e que aquele papel com regras e assinaturas seria um dos vetores dessa mudança.
Há dois meses tinha iniciado o estágio no Planejamento Estratégico do “Asset Management” do Banco X. Trabalhava de manhã 4 vezes por semana e ia para a Poli à tarde, com a roupa social que me dava um ar mais sério. Um dia, dava carona para o Otávio, que observou como segurava volante.
— Cara, você precisa relaxar mais.
Nunca tinha reparado que segurava o volante com tanta força. Ele até encostou em meus braços para mostrar melhor. Não conseguia segurar naturalmente. Vivi os três primeiros anos de Poli tenso, inseguro, com medo de algo que não conseguia nomear.
Inscrevi-me em processos seletivos de estágios de grandes empresas. Somente trabalhar poderia mudar a rotina politécnica. Teria menos tempo ainda para estudar, mas não ligava, precisava encontrar vida em algum lugar além daquele microcosmo. Tinha certeza de que me sentiria melhor trabalhando em um escritório. A primeira dinâmica de grupo que fiz para uma vaga em área comercial foi desastrosa, mas aprendi rápido, e consegui passar em todas as seis dinâmicas de grupo seguintes. Conseguia me dar muito bem em trabalhos coletivos, característica pouquíssimo aproveitada no colegial e na Poli.
Então escolhi trabalhar no Banco X e comecei muito motivado o estágio. Lia tudo sobre administração e finanças enquanto não conseguia deixar de ler nas horas vagas o “Assim Falou Zaratustra” do Nietzsche. Sempre compensei a leitura técnica com a literária. Com o tempo o tédio passou a imperar no estágio, enquanto as aulas na Poli voltavam. Meus colegas de trabalho, com algumas poucas exceções, eram muito desinteressantes e adoravam fofocar sobre os chefes, o que achava uma estupidez, já que puxavam o saco na presença deles. Não conseguia entender como eles se rebaixavam tanto por pessoas que não admiravam. Projetei meu futuro neles e conclui que não queria uma vida como a de ninguém lá, nem mesmo como a do mais bem sucedido diretor. Um dia um colega de trabalho me viu lendo o “Assim Falou Zaratustra”.
—  Esse negócio que você está lendo aí não vai te levar a lugar nenhum.
Cada vez era jogado mais de lado pelos meus chefes. Continuava a trabalhar para manter uma renda que nunca tive, mas jamais poderia vislumbrar um futuro lá. Ficar preso naquele escritório climatizado no topo de um belo prédio comercial me entediava, me cansava, me fazia procurar formas de me libertar enquanto cumpria as horas obrigatórias. Entre o preenchimento de planilhas e relatórios, comecei a usar o tempo que conseguia para voltar a escrever e para fazer pesquisas que me interessavam, especialmente sobre qual seria minha profissão se não fosse engenheiro.
No primeiro dias de aula do quarto ano de Engenharia fui convidado para dar uma aula-trote para os calouros. Mais de 50 alunos numa sala, ansiosos pelo início da Universidade. Eu na frente, vestido com roupa social, e com giz na mão, no limiar da desistência. Apresentei-me como Professor Doutor João Henrique. Coloquei um problema na lousa que resolvi com um sistema de equações diferenciais, assim como o professor de Física fez em minha primeira aula que não era trote. Todos na sala cheios de dúvida. E eu era o que tinha mais dúvidas. Muitos anotavam aquela resolução.
Não dei tempo de copiarem. Apaguei a lousa. Olhei para todos sem dizer uma palavra. Colegas meus da Mecatrônica entravam na sala, riam sentados nas carteiras do fundo. Silêncio total. Queria dizer algo para todos aqueles calouros, mas não conseguia articular. Meus pensamentos voltaram para o início do curso, voltaram mais ainda, para aquele período de liberdade entre o fim do vestibular e o começo da Universidade. Comecei a falar e a escrever sobre o que realmente me fascinava naquela época: relatividade e astronomia. Mas enquanto dava a aula e notava a superficialidade de meu conhecimento, percebi que em todos os anos anteirores nunca tinha me aprofundado naqueles assuntos, e que a Poli só tinha me afastado do prazer que a Ciência me proporcionava. Minha aula-trote durou menos de 40 minutos — era para ter 90. Saí da sala repentinamente, sem me despedir. No corredor ecoava o burburinho dos calouros confusos.
Vazio. Era assim que me sentia em 2005. Fazia tudo por inércia, menos ler sobre assuntos que nada tinham a ver com minha carreira ou escrever textos nos quais tentava compreender os sonhos e toda essa dificuldade de viver. Fazia os cursos chatos e vazios do Banco X: Trabalho em equipe, Influência, Negociação, Comunicação assertiva… — pelo menos garantiam escapadas do trabalho. Na Poli fazia as provas, tirava as notas suficientes de sempre, muitas baseadas em colas.
Na internet do Banco X comecei a pesquisar obsessivamente sobre cursos de Cinema, de Audiovisual. “Por que não corri atrás disso quando estava no colegial?” Queria começar a USP novamente, em um departamento onde me sentisse bem. Cheguei a pensar em Letras, Psicologia e Filosofia, mas o Audiovisual parecia o caminho mais interessante para se transmitir mensagens para muitas pessoas. Seja lá qual mensagem.
Chegou o dia da segunda prova de Eletrônica Digital. Saí mais cedo do curso de Gestão de Pessoas do Banco X, durante o intervalo de café. Dirigi para a Poli para buscar algumas horas de estudo que não tinha conseguido nos dias anteriores. Entrei na sala de estudos da Mecânica, onde outros colegas resolviam exercícios e liam sobre a matéria. Juntei-me a eles. Naquela sexta tudo estava mais pesado e difícil que o normal. Meus colegas diziam que determinadas problemas eram fáceis, mas simplesmente não absorvia. Não tinha ido tão mal na primeira prova, mas sentia que naquele intervalo de tempo tudo havia se apagado da minha memória. Recortei papéis de cola no tradicional tamanho 1/8 de A4 e anotei cegamente algumas fórmulas e modelos de resolução de exercícios importantes da lista. Copiei algumas coisas de meus colegas, que também preparavam suas colas — ninguém pensava no contrato ético que assinamos.
Fui um dos últimos a entrar na sala onde o Professor Ishikawa aguardava ansiosamente com as folhas de questões em mãos. Tinha aberto um largo corredor no meio da sala com suas 50 e poucas carteiras, por onde passaria para evitar qualquer tipo de ilegalidade em sua honrada e difícil prova.
Sentei-me numa das carteiras que havia sobrado na borda do corredor central, bem no meio da fileira. Meus outros colegas pegaram lugares melhores onde poderiam colar e trocar informações com maior facilidade. Ao ler a folha de questões fui dominado pelo desespero. Coração acelerado. “Não sei nada”, pensava enquanto tentava relembrar como fazer os somadores usando operadores lógicos AND, NOT, OR, XOR. Estava perdido numa selva de Unidades Lógicas Aritméticas, multiplexadores e decodificadores.
Ishikawa passava pelo corredor central num intervalo constante. Suor frio escorria pela testa. Meus colegas que poderiam ajudar estavam todos distantes. Sem cola não conseguiria responder questão alguma.
Peguei as folhinhas do bolso, coloquei no meio das folhas de amaço para resolução. Tinha anotado com tamanha falta de conhecimento que não adiantava muito para resolver questão alguma. Meus olhos percorriam as questões, batiam com os títulos dos modelos anotados na cola. Ishikawa passava ao longe, atento. Finalmente consegui encontrar um modelo possível para uma questão na qual mergulhei na resolução. Cheguei a algum resultado. Pelo menos zero não tiraria. Ishikawa adentrou o corredor e estava muito próximo! Rapidamente escondi os papeizinhos de cola no meio das folhas de almaço e fingi ler uma das outras questões com enunciados indecifráveis.
Coração muito acelerado. A mão esquerda, que segurava a folha de questões, tremia. Ishikawa caminhou até a parede do fundo, deu meia-volta. Estava caminhando atrás de mim. Alívio. Comecei a ler outra questão. Havia algo nela que despertava uma remota lembrança de resolução. Quando voltei à folha de almaço de resoluções para respondê-la, percebi uma pontinha minúscula de um dos papeizinhos de cola para fora. Tarde demais. Ishikawa, que estava logo atrás, arrancou todos os papéis de minha carteira. As três folhinhas de cola planaram por um tempo. Ele as pegou no ar. Olhou para mim com absoluto desprezo e disse:
— É, João. A vida não é fácil.
“Não é fácil…”, pensava enquanto guardava minhas coisas na mochila. Levantei-me. “…mas não é impossível”. Os outros colegas de turma continuavam a resolver a prova. Um ou outro me encarou. Caminhei pelo longo, escuro e silencioso corredor do prédio da Mecânica da Poli-USP. Cheguei ao estacionamento. Era uma ensolarada e quente seta-feira de outono. Entrei no carro e apenas uma conclusão era lógica para mim: desistira de Engenharia para fazer Audiovisual.
Naquela mesma sexta-feira, à noite, durante o jantar, revelei a decisão para meus pais, que ficaram chocados, temerosos pelo meu futuro. Tentaram me convencer do contrário. Faltava tão pouco para completar o curso. Minha irmã mais nova, Andressa, que acompanhava tudo o que escrevia, me defendeu. Meu pai, que também lia alguns de meus textos, confiou em minha decisão tão abrupta e pouco justificada. Convenci aos poucos minha mãe de que a Poli não era meu verdadeiro lugar, e que se continuasse naquele caminho, por mais seguro e promissor que o mercado de trabalho fosse, amarguraria uma vida incompleta. Minha família jamais dificultou essa mudança de carreira, e recebi apoio por todos esses anos — sou profundamente grato a eles.
Um poderia comentar sobre a incerteza de sair da Engenharia Mecatrônica no quarto ano e encarar um mundo cheio de dúvidas, especialmente no difícil mercado audiovisual. Outro poderia argumentar que o medo estava em encarar o insuportável término de um curso no qual não tinha identificação alguma, com a mancha da cola no currículo. Só posso dizer que nunca tive tanta certeza de algo. A decisão veio naturalmente. Ao contrário de meus últimos anos politécnicos, não precisava sentir medo. Não havia dilema, havia apenas um caminho. Prestaria o vestibular para o curso no qual intuitivamente sabia ser meu lugar, o Audiovisual na USP. Meus colegas de Mecatrônica me chamaram de louco, mas não queria ficar mais um instante lá. Não queria a vida profissional politécnica e não me interessava pela acadêmica. Otávio esperou um momento de silêncio para me dizer:
— Cara, você precisa de uma namorada.
Não foi fácil voltar à estaca zero acadêmica. Anos depois do fim do colegial, tive que me preocupar novamente com o vestibular.
Recebi um e-mail de Ishikawa marcando reunião em sua sala. Num dia chuvoso, fui para a Poli logo depois do estágio. Na sala de estudos do prédio da Mecânica, resolvia uma prova da FUVEST do ano anterior enquanto esperava a hora para conversar com o professor. Chegou a hora. Esperei até o último minuto para chegar pontualmente à sala dele.
Caminhei pelo corredor escuro e silencioso do prédio da Mecânica. Bati na porta. Fui convidado a entrar. Sala apertada, praticamente sem decoração, cheia de livros, com um computador simples na escrivaninha. Ele me aguardava, sério. Vários papéis em sua mesa. Eu raramente entrava em salas do professores politécnicos, dificilmente tinha contato com eles além da formalidade. Considerava-me um fazedor provas, enquanto eles eram os criadores das mesmas.
— Boa tarde, senhor João Henrique.
Ishikawa consultou os papéis em sua mesa.
— Olha, para início de conversa, gostaria que o senhor confirmasse se essa assinatura é a sua.
Observei o papel: era o contrato ético da disciplina, redigido por Otávio e com todas as assinaturas.
— Sim, é a minha assinatura.
Ishikawa pegou outros papéis, eram listas de presença obrigatórias, que deveriam ser assinadas em todas as aulas para controle e aprovação no sistema de notas. Algumas das assinaturas estavam circuladas em vermelho — ele tinha conferido uma a uma.
— E essa aqui?
Observei a assinatura torta que algum colega gentilmente fizera enquanto estava a caminho da aula, atrasado.
— Não. Alguém assinou por mim. Mas assisti à aula. É difícil chegar pontualmente por causa do estágio.
Ishikawa colocou listas de presença de vários dias sobre a mesa.
— Essa? E essa? E essa?
— Sim. Não. Sim.
De repente Ishikawa colocou sobre a mesa os meus papéis de cola, recolhidos alguns dias antes. Estavam todos com correções e observações em vermelho.
— O senhor poderia me dizer o que é isso?
— Cola.
— Olha, João. O senhor foi desonesto em minha disciplina, contrariou o contrato que assinamos. Eu cumpri minha parte, mas o senhor não. Agora como o senhor acha que deve ser sua punição?
Não tinha paciência para aquela conversa, muito menos para encarar aquele professor. Tinha desistido da Poli e queria sair o mais rápido possível de lá.
— Fico com zero. Vou me esforçar para ir bem na terceira prova, e vou passar.
— Acho difícil acreditar no senhor.
Ishikawa pegou mais um monte de papéis: era o meu histórico da Poli.
— Seus primeiros semestres foram razoavelmente bons, mas do ano passado para cá suas notas ficaram cada vez piores. Quatro dependências no ano passado. O senhor não tem vergonha desse histórico?
— O que você quer que eu diga?
— João, o senhor sabe quanto cada aluno desta escola custa para o governo?
— Não. Muito, não é?
— Sim, muito. O senhor é aluno de uma instituição pública. E uma das mais respeitadas da América Latina. Alunos como o senhor mancham nossa reputação e fazem com que não consigamos competir com as melhores do mundo. O senhor sabe de quanto é o índice de desistência da Poli?
— Uns vinte por cento?
— Trinta por cento! E está aumentando. É um desperdício de dinheiro público gigantesco. João, eu não quero o senhor piorando essa estatística. Já fiz parte da comissão de graduação, e esse índice não pode subir. Não quero que o senhor macule mais ainda a imagem da Poli.
Nunca concordei com o sistema politécnico de ensino e avaliação, mas nunca tinha contestado coisa alguma a alguém de lá. Todos os anos de frustrações que geraram medo e desmotivação se acumularam de tal forma em minha alma que bastava algo forte o suficiente para que finalmente desistisse; e Ishikawa me proporcionou isso. Agora o encarava de frente e não queria me calar mais.
— Imagem da Poli? E todas essas aulas com professores que não ligam para os alunos? E esse sistema de avaliação por provas que estimula a máfia das coletâneas? E esse hábito de colas? Eu odeio colar, me sinto muito mal com isso. Mas sou obrigado por vocês a fazer isso.
— Não venha usar sua mediocridade acadêmica para acusar a instituição. Acadêmicos  e profissionais excelentes se formam na Poli. Temos que lidar com as maçãs podres. Alguns alunos têm solução sim.
— Maçã podre? É isso que eu sou? Ter feito esse curso só serviu para acabar com a minha autoestima. Olha, eu sempre fui um bom aluno, sempre amei estudar, sempre quis ir além dessa mediocridade que você fala. O método de ensino daqui não funciona para mim. Alguns alunos vão bem porque eles correm atrás sozinhos e se adaptam ao método com mais facilidade. Essas provas não adiantam para nada. Poderíamos aprender muito mais sem elas. Somos escravos disso.
— É o método que temos, senhor João. E precisamos cumprir as regras estabelecidas. Falta ética em nosso país. Esse jeitinho brasileiro ridículo… Toda essa malandragem que só prolifera a mediocridade. Não há um método melhor para avaliar, especialmente na Politécnica, com tantos alunos. Alunos como o senhor podem sim mudar. Basta terem disciplina, estudarem mais, tirarem boas notas, serem exemplares. O senhor pode provar para mim que não é uma maçã podre, e honrar todo o dinheiro público investido em sua formação.
— Sempre honrei. Dei o melhor de mim e nunca fui aceito. Sei que estou longe de ser um bom aluno, mas sei também todo o esforço, todo o tempo que dediquei à Poli. Não aguento mais me sentir frustrado.
Ishikawa se levantou um pouco da cadeira.
— João Henrique, eu não quero que o senhor desista.
— Não desistirei. Não se preocupe.
Levantei-me sem a conversa ter chegado ao fim. Me dirigi à porta. Ishikawa também se levantou e me acompanhou.
— Em breve comunicarei ao senhor sobre o resultado de nossa reunião.
Despedi-me de Ishikawa e caminhei pelos corredores do prédio da Mecânica. Entrei em algumas salas vazias. Ouvi ecos de aulas passadas. Vi nas carteiras fórmulas de colas rabiscadas a lápis. Ao me aproximar do carro, encontrei Otávio.
— Você sabe que o Rubens também foi pego colando logo depois de você?
Nunca tinha falado com Rubens, mas sabia que era um ótimo aluno, muito melhor que eu. Otávio retomou o assunto.
— Você vai voltar, né?
— Não. Eu não sou engenheiro.
Nunca me sentira tão dono de meu destino quanto naqueles dias de 2005. Marquei provas de bolsas de estudo nos principais cursinhos, enquanto continuava a estagiar no Banco X. Tinha liberdade para ler o que queria, assim como escrever histórias. Não tinha mais todas aquelas preocupações politécnicas que me atormentaram por tanto tempo. Nem lembrava do professor Ishikawa até que, numa manhã, chegou o e-mail com o assunto “Resultado”. Finalmente a reunião final.
Caminhei pelos corredores do prédio da Mecânica até me aproximar da sala de Ishikawa. Rubens, o outro aluno que também foi pego, estava aguardando. Cumprimentei-o. Trocamos rápidas palavras sobre o ocorrido, sobre nosso azar, sobre minha decisão de não continuar na Poli. Ishikawa abriu a porta e me chamou.
— Sente-se, senhor João Henrique.
Ishikawa estava contente com algo. Seus olhos através das lentes cintilavam com as ideias que estava prestes a compartilhar.
— Analisei novamente sua cola, e realmente o senhor não tinha ideia da matéria. Nem se tivesse todo o tempo do mundo para copiar o que está aqui. O senhor estava fadado a ir muito mal.
— Já entendi isso. Sei que mereço o zero. E já prometi me esforçar na terceira prova.
— Não acredito. Tudo em nossa última reunião me fez crer que o senhor desistiria, que contribuiria para as estatísticas que mancham a imagem de nossa escola.
Não tinha medo dele. Encarava-o nos olhos… Mas não conseguia esconder que estava louco para sair da Poli. Não queria aprender Eletrônica Digital ou qualquer outra disciplina daquela faculdade.
— Professor, estou dando a minha palavra. Já conversamos sobre isso. Vou me dedicar e vou conseguir. Por favor, acredite em mim.
— Não, não acredito. O senhor conhece o Rubens, não é?
— Conheço de vista.
Ishikawa colocou outro papelzinho de cola sobre sua mesa. Era a resolução da questão 2 da prova.
— O Rubens, ao contrário do senhor, sabia resolver a prova. Mas o peguei passando isso para alguém que não consegui descobrir.
Rubens passava a resolução para Carla, também estagiária do Banco X e grande amiga dele. Num futuro próximo se tornariam namorados. Ishikawa se levantou e abriu a porta.
— Entre, senhor Rubens, por favor.
Rubens também estranhou aquela situação. Por que Ishikawa conversaria conosco ao mesmo tempo? O professor se sentou.
— Tenho que resolver os problemas dos dois. De um lado, o senhor, João Henrique, que não sabia nada da matéria, tentou trapacear copiando cegamente coisas do livro; e claramente quer desistir do curso. De outro, Rubens, que sabe a matéria, mas trapaceou ao tentar entregar as respostas para alguém. Refleti enquanto praticava minha corrida matinal pelo campus… E finalmente tive uma ideia.
Ishikawa sorriu.
— O senhor, Rubens, vai ajudar o João a passar em minha matéria.
Rubens estranhou, não pensou muito ao responder.
— Claro que ajudo. Sem problemas.
— Acho ótimo alguém me ajudar.
— Mas tem um porém. Quero ter certeza absoluta de que os senhores vão se ajudar. Então pensei na seguinte regra de vinculação de ambos: Se um ficar de recuperação, o outro também fica de recuperação. Se um reprovar direto, o outro também. Portanto, ambos precisam passar em Eletrônica Digital. O que acontece com um obrigatoriamente acontece com o outro.
Encarei Ishikawa enquanto uma torrente de pensamentos fluía como uma turbulenta correnteza. Todos os mais de 3 anos politécnicos atravessavam meu peito, meu cérebro, formando uma corrente que me prendia àquele lugar.
— Isso não é justo, professor! O Rubens não tem culpa do meu erro e da minha ignorância em Eletrônica. Você não pode nos vincular assim! Isso é errado.
— Eu posso ajudar o João sem essa regra. Gosto de ensinar, vai ser bom para mim. Mas assim é demais.
Ishikawa manteve o sorriso no rosto. Nosso desconcerto lhe proporcionava prazer.
— Ou os senhores se vinculam, ou ambos reprovam agora. Os senhores são culpados e essa é a única chance que posso dar. Os senhores assinaram um contrato, não é? O que escolhem? Reprovação ou última chance?
— Última chance — respondemos.
— A partir de agora máxima atenção e tolerância zero. Nunca mais poderão chegar atrasados; a correção das provas dos senhores será especial; e os senhores precisam entregar todas as listas de exercícios da disciplina resolvidas.
Saímos atordoados da sala do professor. No corredor, Rubens me disse:
— Olha, João, sei que você desistiu. Não tem problema se eu tiver que fazer Eletrônica Digital de novo.
Não me sentiria bem em saber que fui o responsável pela reprovação de Rubens, mesmo sendo uma condição criada por Ishikawa.
— Rubens, a gente vai passar. Prometo que vou me esforçar, cara.
Eram muitas listas de exercícios, com páginas e mais páginas de resoluções. Ia para a Poli apenas uma vez por semana, toda a sexta, para assistir à aula do Ishikawa e estudar com o Rubens, fazendo as listas de exercícios. Ia para o estágio no Banco X, e nas horas vagas estudava para o vestibular.
Chegou o dia da prova final de Eletrônica Digital. Não colei e respondi a todas as questões. Tinha estudado e estava relativamente confiante.
Um tempo depois fui à Poli ver as notas no mural. Em ordem alfabética até o meu nome e a decepção do 6 e pouco — longe do 7,5 que precisava. No nome de Rubens, o espaço da nota estava em branco. Ou seja, ele tirou uma nota suficientemente alta para passar, mas graças à regra, ficou de recuperação comigo.
Procurei Rubens numa das aulas da Mecatrônica e o chamei.
— Desculpa, Rubens, fiz de tudo para ir bem. Juro que pensava ter ido melhor.
— O Ishikawa falou que ia dar atenção especial pra nossa correção.
— Você passou com certeza. Senão ele teria colocado sua nota no mural.
— Não tem problema, João. Tentamos. Não deu. Agradeço por você ter se esforçado. Agora você pode sair da Poli tranquilo.
— Cara, eu não vou sair sem passarmos. Quero ir embora com a consciência limpa. Vamos fazer essa prova de recuperação. Confia em mim.
Para a prova de recuperação tínhamos que entregar dezenas de exercícios em dezenas de páginas de resolução. No fim de nossas férias de julho ficamos uma semana resolvendo a lista juntos. Alguns outros colegas também ficaram de recuperação e passamos tardes de exercícios na sala de estudos do prédio da Mecânica. Nos divertíamos nos momentos de folga e aprofundei a amizade com Rubens. Nunca o teria conhecido de outra forma. Um outro colega, Daniel, veio no último dia, fez só alguns exercícios, copiou outros, mas não teve muito tempo. Decidiu deixar assim mesmo. Fizemos todos, menos o último exercício. Não sabíamos resolver. Eu e Rubens deixamos em branco e entregamos no escaninho do professor Ishikawa. A prova era no dia seguinte.
Sentia-me apto a fazer a prova de recuperação, muito mais do que qualquer outra prova. Estudamos juntos de manhã. Na sala de aula esperamos a chegada de Ishikawa. Ele entrou com as provas em mãos. Sentou-se à mesa. Estava particularmente irritado.
— Senhor Daniel, a resolução de sua lista está incompleta. O senhor não pode fazer a prova de recuperação. Saia daqui.
Daniel se levantou tentou argumentar.
— Não adianta me falar nada. Só com a resolução completa da lista o senhor teria o direito de fazer essa prova. Até o ano que vem.
Daniel, irritado, guardou suas coisas. Saiu da sala. O professor olhou em meus olhos.
—João e Rubens, falta o último exercício da lista dos senhores.
Não conseguia acreditar que o esforço seria inútil e que Ishikawa acabaria com tudo assim.
— Mas vou deixar os senhores fazerem a prova.
Enorme alívio.
— Porém, os senhores têm até as dezoito horas de hoje para entregarem a resolução do exercício em meu escaninho.
Passava pouco das catorze horas. Teríamos que correr. Ao receber o caderno da prova tinha certeza de como resolver muitas questões. “Minha última prova na Poli”, pensava enquanto terminava de fazer os diagramas de portas lógicas, os somadores e as conversões de números binários. Entreguei a prova à dezessete horas. Ainda tinha o último exercício da lista antes de tudo acabar.
Corri à biblioteca, onde Rubens já quebrava a cabeça para resolver o exercício — realmente parecia impossível. Minha energia estava esgotada, gastara tudo na prova. Na hora da resolução o vazio politécnico característico imperava — vácuo. Rubens, com toda sua inteligência e força de vontade, se concentrou, encontrou o caminho. Copiei tudo e colocamos no escaninho de Ishikawa.
No dia seguinte uma nota 5 já havia sido colocada no sistema por Ishikawa. Fiquei muito aliviado por Rubens ter passado, e por não ter mais que ir à Poli. Fiquei mais alguns meses no estágio enquanto fazia cursinho no Anglo à noite. Pedi demissão 2 meses antes do vestibular.
Passei em trigésimo quinto lugar no curso de Audiovisual da USP, o último colocado da primeira chamada. Comecei 2006 com enorme vontade de recomeçar, entregando-me inteiramente. Apaixonei-me pelo Audiovisual e encarei o curso de forma oposta à passividade que encarava a Poli. Lógico que também enfrentei problemas, mas me dediquei a aprender tudo o que poderia, sempre pensando em formas de construir algo significativo. Formei-me em 2011. O Audiovisual mudou minha maneira de encarar o mundo. Conheci amigos incríveis que mantenho até hoje e que trabalho junto. Sou membro, com orgulho, de um coletivo de criação. Sinto-me feliz em poder me dedicar integral e sinceramente a algo que acredito.
Apesar de não ter o diploma, sempre serei engenheiro em muitos aspectos. O tempo na Poli moldou minha personalidade e meu pensamento de tal forma que ainda faz parte de mim. Não me arrependo de ter feito Engenharia, só penso que não deveria ter sentido medo por tanto tempo. Uma escolha errada não precisa acabar com uma vida inteira.
Mudar muitas vezes é necessário. Ninguém precisa ter medo ou vergonha por estar no lugar errado na hora errada. É um ato de coragem perceber isso e descobrir o melhor para si mesmo (e, consequentemente, para os outros) ao colocar a vida em outro rumo. Um amigo trocou o Audiovisual pela Poli e se completou, encontrou seu lugar; outro saiu para cursar Medicina. Ter uma vida artificial, que nada tem a ver com a verdade interior é o pior que uma pessoa pode fazer. Se a mudança é necessária, ela deve ser feita, por mais assustador que isso pareça.
Ainda não tive coragem, mas gostaria muito de percorrer os escuros corredores do prédio da Mecânica da Poli e visitar novamente a sala do Professor Ishikawa. Agradeceria por ele ter provocado essa reviravolta tão necessária. Voltaria a conversar de igual para igual sobre a instituição e sobre nossas visões de mundo. Será que ainda não concordaríamos em nada?
Ironicamente, preparo-me para fazer Mestrado. Quero ser professor de alguma disciplina de Audiovisual e até idealizo algumas aulas que darei. Não sei ao certo como será minha didática, mas sei que me esforçarei ao máximo para criar laços e trocar conhecimento com os alunos de forma menos autoritária, mais respeitosa. E tenho certeza de uma coisa: se um dia tiver que aplicar provas, elas poderão ter consulta.