quinta-feira, 22 de março de 2012

Crime organizado no Poder Judiciário


Por Fernando Nogueira da Costa, professor do IE-UNICAMP e ex-diretor executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos.
Umas das “cenas da vida brasileira” que antes eu desconhecia e mais me impressionaram, durante 4,5 anos em que fui diretor-executivo da FEBRABAN (2003-2007), foi ser informado sobre as quadrilhas de crime organizado que agem no Poder Judiciário para achacar bancos. Bancos são responsáveis por recursos de terceiros e repassam todas as perdas, inclusive as de origem criminosa, para os juros e as tarifas cobradas, ou seja, todos os clientes sofrem com esses crimes. Maíra Magro (Valor, 07/03/12) informa a respeito.
A cada ano, milhares de pessoas no país têm o nome utilizado em ações judiciais fraudulentas contra bancos, sem saber disso. Elas são vítimas de quadrilhas formadas por advogados que usam o Judiciário para praticar golpes. Atualmente, entre 10% e 15% dos processos judiciais contra as maiores instituições financeiras do país envolvem algum tipo de fraude, segundo estimativa da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). O problema mobiliza a Polícia Federal e o Ministério Público, em investigações que já levaram à prisão, no Rio de Janeiro e em São Paulo, de grupos especializados no crime de ludibriar tribunais.
Um dos golpes mais comuns envolve pedidos de correção inflacionária durante os planos econômicos das décadas de 1980 e 1990. A discussão legítima acabou desvirtuada em milhares de processos, muitos deles em nome de pessoas que nunca imaginaram acionar o Judiciário com esse propósito. Outra modalidade ficou conhecida como indústria do “limpe seu nome”. Profissionais mal intencionados forjam documentos alegando inscrições indevidas em cadastros de devedores como SPC e Serasa, para depois reclamar danos morais.
Usaram nome, CPF e extratos bancários, por exemplo, para pleitear perdas do plano Verão de morador do Rio de Janeiro. Ele não sabia que figurava como autor de um processo contra o Itaú em Limeira, no interior de São Paulo, onde nunca residiu. O banco foi condenado na Justiça a pagar R$ 177 mil ao suposto autor da ação. Mas quem recebeu o dinheiro foi a advogada que assinou o pedido.
Em outro tipo de fraude, advogados entram com centenas de ações de exibição de documentos contra um mesmo banco, em diferentes comarcas. Chegam a pedir a apresentação de todos os extratos de um correntista nos últimos 20 anos, com a justificativa de verificar possíveis cobranças ilegais. Diante da enormidade de processos, os bancos nem sempre conseguem cumprir o prazo definido pelos juízes, apenas alguns dias, para entregar informações de época em que os arquivos ainda eram em papel. Acabam condenados a pagar honorários aos advogados que entraram com as ações, ainda que não haja cobrança irregular. Como as ações são ajuizadas em massa, o prejuízo pode ser considerável.
O objetivo comum nesses processos é induzir o Judiciário a erro, montando caso falso. Em algumas cidades, se os processos fossem verdadeiros, mais de 100% da população adulta estaria movendo ações contra as instituições financeiras. Tanto o banco como o cliente são vítimas.
As demandas são manipuladas com documentos falsos, ou pedidos repetidos de um mesmo autor, cujo nome é camuflado em grafias ligeiramente diferentes. Depois, advogados munidos de procurações também falsas levantam dinheiro em nome de terceiros. Geralmente há conluio, dificilmente essas fraudes são cometidas por uma pessoa sozinha. É preciso conhecimentos técnicos e a participação de atores nos ambientes onde elas são produzidas.
Quando a estratégia é descoberta pelo juiz de certa comarca, os advogados migram para outras, usando os mesmos artifícios. Juízes de boa-fé estão sendo enganados, imagine os de má-fé: estes não se enganam! Quando o magistrado honesto percebe o problema, a reação é imediata: as ações são declaradas improcedentes. Mas os advogados vão mudando de comarca, conforme a decisão do juiz.
Aposentada, moradora de Brasília, encontrou por acaso na internet duas ações ajuizadas em 2008 em nome de seu pai, que morreu 17 anos antes. Elas corriam nas cidades de Valinhos e Limeira, no interior de São Paulo, pedindo, novamente, a correção da poupança durante os planos econômicos. Além do gasto de tempo e dinheiro para lidar com a farsa, a família reclama do constrangimento: ver a imagem do pai, homem extremamente íntegro, ligada a bando de estelionatários.
A fraude surgiu depois que os bancos foram condenados, em ações coletivas no país, a repor aos poupadores perdas financeiras durante os planos Bresser, Verão e Collor. O assunto ainda será avaliado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o correntista beneficiado por sentenças coletivas definitivas pode receber as correções entrando com ações individuais. O direito, porém, acabou deturpado em inúmeros processos.
Determinada advogada é investigada por mover mais de 500 ações fraudulentas no interior paulista. Ela foi denunciada pelo Ministério Público, na 3ª Vara Criminal de Valinhos, por estelionato praticado de forma repetida – 193 vezes. Segundo o promotor que atuou na causa, os processos envolveriam mais de R$ 12 milhões, dos quais R$ 368 mil chegaram a ser retirados. Não se concluiu ainda nas investigações se houve conluio com outras pessoas, ou quebra de sigilo por funcionários do banco.
Em setembro, investigações da polícia e do Ministério Público em São Paulo levaram à prisão de dez pessoas acusadas de fraudar o Judiciário em ações de planos econômicos. Segundo a denúncia que corre na 1ª Vara Criminal de Avaré, no interior paulista, comprovou-se a existência de quadrilha organizada, comandada por advogado e inúmeros outros participantes. Este advogado já cumpriu dois mandatos como vereador na cidade de Lençóis Paulista. De acordo com o MP, a quadrilha conseguia ilegalmente bases de dados com informações bancárias de correntistas, e entrava com ações em nome dessas pessoas, usando documentos falsos.
Segundo as investigações, o grupo tentava levantar cerca de R$ 20 milhões em mais de 12 mil processos judiciais, em São Paulo e algumas comarcas de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. Os dados bancários sigilosos seriam obtidos por funcionários de empresas terceirizadas que prestavam serviços aos bancos, e teriam sido repassados a outros profissionais que operam de forma semelhante.
O dito cujo passou 37 dias na prisão. Agora está advogando normalmente, enquanto responde ao processo criminal em Avaré. Advogados que atuam em ações de planos econômicos têm acesso fácil a bases de dados de correntistas. Se você consultar advogados que mexem com expurgos, eles têm essas fontes. As pessoas oferecem as bases de dados e, se procurar, encontra até na internet. As bases de dados incluem “alguns bancos”. O advogado confirmou que tem milhares de processos contra bancos, e disse que muitos clientes são obtidos por meio do Instituto Nacional de Proteção e Defesa dos Direitos do Cidadão (Inapadec), que atua em três Estados.
Em geral, fraudadores valem-se de dois artifícios para lucrar com as ações judiciais. Primeiro, requerem o benefício da justiça gratuita – um direito garantido a quem não tem recursos – para livrar-se de gastos processuais. No segundo passo, fazem constar em uma procuração falsa que o suposto cliente lhes dá plenos poderes para receber o valor pleiteado.
Os bancos afirmam não ter contabilizado o prejuízo causado pelas fraudes, mas o impacto não seria desprezível. [Estas informações se divulgadas poderiam abalar a confiança na segurança dos bancos e incentivar novos crimes.] Até que a fraude seja descoberta, muitas ações dão ganho de causa a pessoas que agiram de má-fé.
O próprio Judiciário tem dificuldade de reconhecer a ilegalidade de eventuais ações. Quando se percebe cem ações desse tipo, já liquidou outras cem. A situação tem ficado mais crítica nos últimos dois anos. Houve de fato aumento no número de processos fraudulentos, mas os bancos também se tornaram mais preparados para identificar essas situações.
No Rio de Janeiro, advogado foi identificado como autor de 18 mil ações consideradas fraudulentas, muitas delas contra bancos, segundo apurações conduzidas pelo Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ). Ele e outras nove pessoas tiveram a prisão preventiva decretada no fim do ano passado, por fraudes que podem ter-lhes rendido R$ 10 milhões. Casal de advogados, também denunciado, assinava um volume de sete mil processos irregulares, segundo as investigações da Corte. As prisões foram revogadas a pedido da defesa, mas os advogados continuam a responder a processos criminais.
De acordo com as apurações do tribunal, o grupo acessava cadastros de pessoas com o nome sujo para entrar com ações de indenização, falsificando documentos como procurações e comprovantes de inscrição nos cadastros de devedores. Após a identificação da quadrilha, o número de ações distribuídas aos juízes de primeira instância no Rio caiu 30%. A fraude é muito maior do que se supunha inicialmente. Alguns dos escritórios envolvidos operam também em outros Estados.
No Paraná, a Polícia Federal investiga empresas que anunciam serviços de recuperação de ativos, mas, na prática, acabam vendendo ações judiciais – comportamento proibido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), considerado captação indevida de clientela. Um inquérito policial foi motivado por suposta quebra de sigilo bancário para obtenção de listas de correntistas e extratos.
Outra “cena da vida brasileira” escandalosa foi narrada por Maíra Magro (Valor, 07/03/12). Um sujeito diz que é bilionário. Há sete anos, o gaúcho “humilde” de 79 anos, natural de Rio Grande, cidadezinha de 200 mil habitantes no extremo Sul do país, recorre a diferentes tribunais de Justiça na tentativa de receber do Banco do Brasil (BB) mais de R$ 15 bilhões.
Ele alega que o banco bloqueou sua renda, conquistada ao longo dos anos com investimentos diversificados: venda de pedras preciosas, de títulos da dívida externa, de patentes de invenções e incursões nos setores de hotelaria, agropecuária e mineração. O caso já foi parar na Presidência da República e no Banco Central, em cartas enviadas por ele e pedidos de resposta ao BB. O caso vem movimentando times de advogados de diferentes regiões do país.
A primeira investida foi em Alagoas, em 2005. Ele conseguiu uma liminar obrigando a instituição financeira a transferir R$ 84 milhões a uma conta em seu nome. Por pouco, não ficou com o dinheiro. O banco conseguiu reverter a decisão.
Ele fez nova tentativa em Goiás, alegando “bloqueio administrativo” de seu crédito. Juntou ao processo suposto extrato com saldo de R$ 4,7 bilhões. Em 2008, esclareceu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal que o bloqueio se devia a uma investigação sobre lavagem de dinheiro, motivada pelo tamanho de sua riqueza. Teve o cuidado de provar que a quantia constava em sua declaração de Imposto de Renda – o tributo não foi recolhido, ressalvou, porque o banco teria confiscado o dinheiro.
Frente à sua insistência, a Justiça de Brasília condenou o Banco do Brasil a apresentar os documentos pleiteados por ele. A instituição alegou em seu recurso que se tratava de tarefa impossível: embora o correntista fosse verdadeiro, o extrato estaria mais próximo do zero que da casa do bilhão.
Como turista do Judiciário, o gaúcho fez nova parada na Justiça de Porto Alegre, pedindo ao banco, desta vez, indenização por danos morais por bloquear sua fortuna. Não teve sucesso: faltou-lhe dinheiro para pagar as custas do processo.
Novamente em Brasília, a juíza da 11ª Vara Cível pediu providências à Receita Federal por estranhar os fatos descritos na ação. Enquanto a declaração de IR do gaúcho dava conta de saldos bilionários, sua renda anual era inferior a R$ 22 mil, segundo dados da ação.
Ele não se intimidou e recorreu à Justiça paulista. Desta vez, a inicial veio com o nome de Dercy Amor em vez de Percy Anor! No novo processo, apresentado no fim de 2010, ele diz que tem instrução escolar precária, está com a saúde frágil e em estado de penúria. Relata que há mais de dez anos teve certa quantia bilionária depositada em sua conta, mas o banco, de forma arbitrária, não permite o levantamento. Como o valor estaria em sua posse há mais de cinco anos, seria beneficiado pelo usucapião.
Em novembro, o suposto bilionário recorreu à presidente Dilma Rousseff. Enviou-lhe carta pedindo consulta “sob sigilo” e o desbloqueio de sua conta no Banco do Brasil. Alegou desta vez que “rupturas internas entre investidores” causaram o extravio de centenas de documentos, impossibilitando demonstrar à instituição bancária “os fatos legais da origem dos recursos depositados.” A essa altura, segundo dados mencionados na carta, o valor já teria dobrado: passaria de R$ 34,2 bilhões.
Recentemente, episódio semelhante a esse foi além da dor de cabeça causada ao banco e seus advogados: gerou polêmica até no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), colocando em lados opostos a corregedora, ministra Eliana Calmon, e entidades da magistratura.
No fim de 2010, Eliana suspendeu uma decisão da juíza Vera Araújo de Souza, da 5ª Vara Cível de Belém do Pará, que obrigava o Banco do Brasil a bloquear R$ 2,3 bilhões de sua receita. O valor era pleiteado por um cidadão que vivia de forma modesta na cidade de Tatuí, no interior paulista, e alegava ser dono do dinheiro. O próximo passo era a transferência do montante para sua conta corrente. De acordo com ele, o valor estava em seu nome havia mais de cinco anos, o que caracterizaria usucapião.
A liminar bloqueando a quantia no Banco do Brasil foi confirmada no Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA). O banco tentou reverter o caso, mas como não teve sucesso recorreu ao CNJ pedindo a suspensão da liminar.
A ministra Eliana Calmon aceitou o pedido do banco e tornou a decisão sem efeitos. “Ficou muito claro que o Judiciário estava sendo usado para um golpe”, declarou na época. Apesar de ter evitado o saque do dinheiro, a decisão rendeu graves acusações de parte da magistratura contra a ministra. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) enviou uma carta aos juízes do país dizendo que a corregedora estaria ameaçando a independência dos magistrados, e fez uma representação contra Eliana no Supremo Tribunal Federal (STF) e no CNJ.
O desfecho mostrou, no entanto, que a corregedora tinha razão. No começo deste ano, a polícia de São Paulo prendeu o fulano, também conhecido como Chico da Fossa ou Mineirinho, e mais quatro pessoas, apontadas como integrantes de uma quadrilha especializada em fraudes bancárias. O grupo foi autuado por falsificação de documentos, fraude processual e formação de quadrilha.

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